Não há relato de brasileiro que se diga satisfeito com a qualidade do serviço público oferecido no país, tampouco de cidadãos contentes com o tamanho da conta que pagam pelo que recebem em troca. Nesse sentido, nada mais alvissareiro que as notícias a respeito do projeto de reforma administrativa a ser enviado ao Congresso, com a proposta de racionalizar e enxugar a burocracia brasileira. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro tratou de baixar as expectativas com relação ao assunto. Indagado na segunda-feira 18 sobre a data em que finalmente apresentaria seu projeto ao Legislativo, depois de vários adiamentos, o presidente respondeu: “Para que tanta pressa? Não estou entendendo”.
Os números ajudam a compreender a urgência. Os gastos com o funcionalismo já superam 13% do PIB brasileiro — o equivalente a 927,8 bilhões de reais no ano passado —, e o retorno, sabe-se, não é dos melhores. Eis um problema percebido até mesmo por quem olha de fora. Um relatório do Banco Mundial abordou a draga das contas com os servidores públicos e apresentou exemplos de reformas adotadas em outros países para mitigar tamanha ineficiência.
Portugal, aponta o documento, conseguiu sanar dívidas altíssimas por meio da determinação de combater os gastos com pessoal. Os resultados não foram imediatos, mas hoje são claros. Há dez anos, não era possível vislumbrar que o país se tornaria uma das nações europeias com as contas mais organizadas, com previsão de déficit zero para 2020, crescimento de 2,4% no ano passado e níveis de desemprego controlados.
A virada começou em 2004, quando o governo aprovou uma medida para reduzir em 25% o número de cargos de chefia na administração pública. Dois anos depois, iniciou um processo para permitir que funcionários públicos fossem transferidos de órgãos do Executivo — a fim de evitar novas contratações —, além de determinar que o Estado só poderia abrir uma vaga a partir da aposentadoria de dois servidores.
No meio do processo, o país foi atropelado pela crise de 2008. O governo lusitano enfrentou protestos do funcionalismo, mas, em vez de reduzir o ritmo das reformas, aprofundou as mudanças. Sancionou um novo estatuto para os servidores, num projeto que equiparou o salário dos recém-admitidos aos pagos para a mesma função na iniciativa privada. Além disso, unificou 1 715 carreiras em apenas três, estipulou a progressão e promoção por critérios de desempenho e facilitou a demissão de funcionários públicos. Oito anos depois, ainda sob pressão das contas que não fechavam, os governantes trabalharam para fundir juntas de freguesia — unidades da federação menores que o município — que não se pagavam. A reforma foi capitaneada pelo então ministro de Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas. “Temos o menor nível de dívida do século e os serviços públicos estão reforçados, o que quebra os mitos de que fazer reformas cria problemas às comunidades”, diz ele, que escreveu sobre a experiência no livro O Outro Lado da Governação — A Reforma da Administração Local. Desde então, o número de funcionários públicos caiu de 727 785 para 683 469. Parece pouco, mas a queda de 6% contrasta com o aumento de cerca de 4% durante o mesmo período no Brasil.
Aliada a políticas de austeridade, entre elas o aumento de impostos e o corte de benefícios como 13º e 14º salários para os servidores, a agenda de reformas permitiu a Portugal controlar seu déficit. Em 2014, o país deixou o programa de assistência concedido pelo triunvirato constituído pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Com isso, pôs fim a três anos de auxílio financeiro das instituições, que somaram 78 milhões de euros. Do outro lado do Atlântico, na terça 19, em resposta à declaração de Bolsonaro, o ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, veio a público tentar acalmar os inconformados e dizer que tem, sim, pressa em apresentar sua proposta de reforma. Com isso, esclareceu que já passa da hora de o governo federal ajustar as velas e, à moda portuguesa, permitir que o Brasil volte a navegar.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662