Azul, Gol e Latam caem nas mãos dos bancos ao aceitarem socorro do governo
À beira do colapso, principais companhias aéreas do país podem sofrer com o assédio de fundos estrangeiros oportunistas
Quando a pandemia do novo coronavírus começou a afetar a demanda por voos domésticos e internacionais, representantes do setor aéreo brasileiro se reuniram com o secretário nacional de Aviação Civil, Ronei Saggioro Glanzmann, com integrantes dos Ministérios da Economia e da Infraestrutura e também com membros do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para definir um socorro que evitasse o colapso do mercado. Foram dois meses de negociações para que, enfim, se chegasse a um acordo: o presidente do BNDES, Gustavo Montezano, anunciou na teleconferência do banco nesta sexta-feira, 15, que as três principais companhias aéreas que atuam no país — Azul, Gol e Latam — aderiram à ajuda setorial, avaliada em 6 bilhões de reais (2 bilhões de reais para cada). O alento, no entanto, ainda gera dúvidas sobre sua eficácia. Como os bancos envolvidos na transação estão adquirindo participações nas empresas há um temor que, no futuro, algum conglomerado estrangeiro se aproveite disso para ganhar mercado no país — algo que já aconteceu com a TAM, comprada pela chilena Lan em 2010.
Em maio de 2019, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) expediu uma Medida Provisória, que posteriormente se tornou lei. Sua principal função era aprovar a abertura do mercado para a participação de 100% de capital estrangeiro nas companhias aéreas brasileiras. Sendo assim, o momento de fragilidade do setor, que amarga perdas catastróficas por conta dos efeitos da pandemia, pode ser um chamariz para que companhias estrangeiras ganhem cada vez mais espaço no país. Em outras palavras: os tubarões estão sentindo cheiro de sangue. “Existe esse risco. Um cenário que pode acontecer é o de bancos passarem essas ações para um fundo de investimento, dono de algum conglomerado internacional, e as decisões estratégicas do tráfego aéreo brasileiro passarem a ser tomadas por outros países, o que geraria outras preocupações”, diz Francisco Lyra, presidente do Instituto Brasileiro de Aviação (IBA) e da consultoria C-Fly Aviation. “Uma coisa que o BNDES não deixou claro, ainda, é se existe a carência e se esse empréstimo é de longuíssimo prazo. Sem esses fatores, o risco de inadimplência é muito alto, porque ninguém sabe ao certo quando a demanda de passageiros voltará”, completa.
De acordo com a proposta, que iria expirar hoje, além do BNDES, o apoio virá por meio de um grupo de bancos: Bradesco, como líder, Itaú e Santander. Do investimento total, 75% será repassado mediante subscrição, pelos bancos, de debêntures simples e 25% via bônus conversíveis em ações emitidos pelas companhias aéreas. O instrumento desenhado pelos bancos prevê um fôlego financeiro às companhias até o primeiro trimestre de 2021. Esperava-se que o socorro fosse anunciado por Montezano em abril, mas as negociações com as companhias aéreas emperraram. Por muito tempo, discutiu-se a forma como seria o acordo. O BNDES reivindicava o preço de conversão próximo ao atual, aproveitando-se da distorção momentânea do valor de mercado dessas empresas. Lembra-se que, em geral, as companhias aéreas não possuem ativos próprios o suficiente para entregar como garantias em caso de virem a sucumbir de vez. Espaços em aeroportos, por exemplo, são alugados. As aeronaves, por sua vez, são arrendadas. Os slots (as autorizações de voos) são concessões. Assim, sobrava pouco patrimônio para ser oferecido como contrapartida. Ao adquirir participações nas empresas, no entanto, resta a dúvida se os bancos terão interesse em manter suas posições ou repassarão suas fatias para fundos estrangeiros oportunistas.
Mas não são apenas as companhias aéreas que sofrem e clamam por uma ajuda. As empresas de serviços auxiliares ao transporte aéreo, que empregam 38.000 pessoas, já demitiram cerca de 25% da força de trabalho. Para elas, espera-se um socorro de ao menos 450 milhões de reais, valor que será destinado por meio de recursos disponíveis no FNAC, o Fundo Nacional de Aviação Civil, gerido atualmente pela Secretaria de Fomento, Planejamento e Parcerias, como garantia para a concessão das linhas de crédito por parte do BNDES. Esses recursos, normalmente, são aplicados para o desenvolvimento do setor e das infraestruturas aeroportuárias e aeronáuticas civil, podendo ser aplicados na ampliação e na reestruturação de aeroportos. Com a crise, no entanto, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, estuda a implementação de uma Medida Provisória ou até um Projeto de Lei que flexibilize a utilização do fundo.
ASSINE VEJA
Clique e Assine“O secretário Ronei e o ministro Tarcísio estão desenhando já há três semanas uma legislação para socorrer o nosso mercado. Eu acho que deveria alterar só o decreto do FNAC, deixando a lei como está. Não iria por esse caminho, porque pode demorar mais. Mas entendo que eles prefiram assim por conta de uma segurança jurídica por parte do governo”, diz Ricardo Miguel, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Serviços Auxiliares ao Transporte Aéreo (Abesata). Ele diz que as empresas auxiliares de transporte aéreo estão sofrendo com a escassez de voos e também porque as principais operadoras de viagens domésticas deixaram de pagar, por um momento, as taxas para os serviços terceirizados. “Hoje, nós só precisamos de 20% da carga de trabalho para funcionar. Há excesso de funcionários. Cerca de 25% foi demitido e uma parte das empresas acionou a MP para diminuição da jornada e do salário. Como o transporte aéreo parou, o nosso faturamento praticamente zerou”, diz Miguel.
A Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA, na sigla em inglês), estima, num cenário otimista, que os níveis de demanda por voos de 2019 não sejam excedidos até 2023, pelo menos. A demanda global de passageiros para 2021 deve ficar 32% menor que a previsão inicial para o ano e 24% inferior aos índices de 2019. A entidade condiciona esse cenário a uma abertura dos mercados domésticos no terceiro trimestre. Em 13 de maio, o CEO da Boeing, David Calhoun, projetou um cenário catastrófico para o setor aéreo global e, ainda, profetizou sobre a quebra de uma grande companhia americana, a qual ele não divulgou. Recentemente, o governo americano disponibilizou um pacote de estímulos avaliado em 25 bilhões de dólares para ajudar as companhias aéreas do país.
No início de maio, o bilionário Warren Buffett, um dos figurões do mercado financeiro, revelou que o fundo Berkshire Hathaway, sua empresa de investimentos, vendeu todas as posições que tinha nas principais companhias aéreas americanas em abril devido à pandemia do novo coronavírus. Segundo ele, as pessoas não vão voltar a voar tanto nos próximos dois ou três anos após a pandemia. “O mundo mudou para as aéreas. Alguns negócios, e esse infelizmente é o caso da indústria da aviação, serão realmente afetados”, disse o investidor, no encontro anual do conglomerado, em Omaha, Estados Unidos.
No mundo, a IATA estima que os novos protocolos da aviação, com regras de distanciamento social, podem obrigar as empresas a aumentarem o valores das passagens aéreas. Dependendo do tipo de aeronave, a medida pode reduzir a taxa de ocupação dos aviões entre 33% e 50%. Segundo a IATA, o reajuste variaria de acordo com o continente, podendo chegar a 43% na América do Norte e 54% na Ásia. Na América Latina, a entidade estima um aumento de 49% no preço dos bilhetes. “Esta é uma medida inócua e que vai ocasionar num prejuízo brutal para as companhias aéreas”, diz Francisco Lyra. “Toda aeronave, para atingir o ponto de equilíbrio entre lucro e prejuízo, precisa ter pelo menos 65% de sua ocupação. Se você tira um terço de sua capacidade, é óbvio que as companhias terão de aumentar o valor das passagens”, complementa. A Associação Brasileira das Empresas Aéreas, a Abear, diz que não há neste momento qualquer estudo para restringir o número de passageiros por viagem. O que há, de fato, é um cenário nebuloso na rota das aéreas.