Pode parecer surreal, mas o setor formado pelas empresas de mais rápido crescimento no Brasil nos últimos anos corre o risco de desaparecer em ritmo igualmente surpreendente. O hábito de comprar por meio de máquinas de leitura de cartões magnéticos ou com chip pode se tornar obsoleto num futuro próximo. Trata-se de uma tendência inexorável nos chamados meios de pagamento, em que já é possível fazer transações via QR code e reconhecimento facial, sem o uso das máquinas onde se inserem os cartões e digita-se a senha no teclado numérico. Um novo passo nessa reviravolta estava prestes a ser dado no país com a entrada em funcionamento do WhatsApp Pay, operado pelo aplicativo de mesmo nome pertencente ao Facebook, em parceria com a empresa líder em operações de pagamento, a Cielo. O lançamento foi revertido, entretanto, na noite da última terça-feira, 23. O Banco Central, que tem defendido a descentralização do sistema financeiro, determinou que as bandeiras de cartões Visa e Mastercard suspendessem o suporte ao sistema, jogando um balde de água fria (ao menos temporário) na empreitada. Mesmo com a decisão do BC em relação ao WhatsApp, o fim das leitoras de cartão é visto como um processo inexorável. “As maquininhas estão com seus dias contados”, vaticina Paulo Caffarelli, CEO da Cielo, que hoje detém 42% do setor.
A decisão do BC, além de reforçar o interesse da autoridade monetária em se manter como indutora da modernização do mercado financeiro, atende aos apelos dos grandes bancos, que temiam o confronto com uma rede social tentacular na operação de transações financeiras. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) também não via com bons olhos a parceria entre Cielo e WhatsApp por acreditar que poderia contribuir com a concentração no mercado — não levando em conta que outras empresas pretendiam entrar na parceria, como a Stone, que negociava a adesão. O BC argumenta que sua determinação tem por objetivo preservar um “ambiente competitivo” em um sistema de pagamentos “interoperável, rápido, seguro, transparente, aberto e barato”.
As características delineadas pelo Banco Central são as mesmas que a instituição usa para defender o PIX, tecnologia de transferência instantânea que deve estrear em novembro no Brasil. Já a proposta de parceria entre WhatsApp e Cielo terá de passar por uma série de ajustes e exigências regulatórias para sair do papel. Mas tudo leva a crer que será apenas uma pausa. Apesar da momentânea sobrevida ao sistema tradicional, a decisão não interrompe o ciclo de inovação desse mercado. Segundo um levantamento feito pela consultoria EY, 54% dos brasileiros afirmam que usarão mais serviços financeiros digitais após a pandemia em detrimento do dinheiro vivo.
Os pagamentos virtuais atualmente oferecidos no mercado sempre tiveram boa performance de crescimento, mas a penetração nas classes mais baixas era mais difícil. Com a pandemia, esse cenário mudou. O uso da tecnologia para compras, principalmente por meio dos smartphones, disparou. O WhatsApp, involuntariamente, se tornou um propulsor desse movimento, como uma porta de acesso entre as empresas e o consumidor. Com isso, a inclusão de um meio de pagamento nessa intermediação passou a ser questão de tempo. Pagamentos por aplicativos de mensagem ainda provocam estranheza no Brasil, mas são sucesso indiscutível em outros países emergentes, como a China. Por lá, o responsável pela mudança é o WeChat, um “superapp” que armazena dados dos clientes e pelo qual é possível pagar compras e contas. A Índia, por sua vez, foi escolhida para ser o mercado-teste das primeiras versões do WhatsApp Pay. “A chegada desses novos meios de pagamento de certa forma reproduzirá o que aconteceu com o Uber, quando assistimos às reações negativas dos taxistas e do poder público. No caso das transações, essa reação vem dos bancos”, analisa Cristina Helena Pinto, economista da ESPM.
ASSINE VEJA
Clique e AssineCuriosamente, a grande aposta do BC, o PIX, também está baseada em transferências usando smartphones, assim como carteiras virtuais como PicPay e Mercado Pago. Para enviar o dinheiro a uma pessoa, o cliente precisará entrar no aplicativo da sua instituição financeira (banco, cooperativa ou fintech) e informar o número de telefone do destinatário ou ao escanear o QR code no caixa de uma loja. Os grandes trunfos desse formato de pagamento em relação às soluções que existem hoje são a possibilidade de ser utilizado entre clientes de diferentes instituições financeiras e, principalmente, a rapidez com que o recurso chega de uma ponta a outra da transação. Enquanto uma compra no débito leva semanas até ser liberada para o vendedor, o PIX funciona como uma transferência que disponibiliza o recurso em dez segundos. “Com a instantaneidade, os empresários receberão o dinheiro mais rápido e isso pode até diminuir a necessidade de capital de giro, por exemplo”, afirma Carlos Eduardo Brandt, diretor adjunto de operações financeiras e pagamentos do BC.
A mudança no uso do dinheiro já está em curso, mesmo antes da operação do PIX, seja devido à pandemia, seja pela atuação de fintechs que operam transações virtuais. “Já conseguimos oferecer a transação por QR code em maquininhas de empresas como Cielo, Getnet e Rede. Migrar para o smartphone é algo natural”, afirma Gueitiro Genso, CEO do PicPay. Ao combinar critérios como livre concorrência, transparência e eficiência a baixo custo, a tecnologia acaba vencendo os entraves à inovação, até mesmo entre os mais renitentes adversários das novidades. Schumpeter (economista que criou a teoria da “destruição criativa”) estava certo.
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693