BC resiste a pressões políticas e mostra força no controle da inflação
O índice de preços ficará dentro da meta pela primeira vez desde 2020. O risco fiscal, porém, demanda atenção
Nos últimos dois anos, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, teve um trabalho incômodo em janeiro: escrever cartas a Paulo Guedes, ex-ministro da Economia, e a Fernando Haddad, o atual ministro da Fazenda, detalhando os motivos pelos quais a inflação fugiu da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional. A exigência, feita à autoridade monetária, tem como objetivo proteger o poder de compra da moeda. Para o começo de 2024, pelo visto, Campos Neto pode riscar a cartinha de sua lista de tarefas. Tudo indica que a inflação caminha para ficar dentro dos limites estabelecidos para 2023. As projeções do mercado financeiro apontam um índice oficial de preços de 4,51% ao fim do ano, ultrapassando a meta de 3,25%, mas ainda abaixo do teto de 4,75% (a tolerância é de 1,5 ponto para cima ou para baixo do alvo).
Em doze meses encerrados em novembro, o IPCA, o índice que representa a inflação do país, foi de 4,68%, já dentro da tolerância. A desinflação é considerada uma grande conquista do BC conduzido por Campos Neto na batalha permanente contra a velha figura do dragão. A alta de preços é um fenômeno que foi disseminado globalmente devido, primeiro, aos impactos da pandemia e, depois, também realimentado pela guerra no Leste Europeu. “Encontrar uma inflação abaixo das expectativas para este ano é, sem dúvida, uma vitória surpreendente”, afirma Luiza Benamor, analista de inflação e contas públicas na Tendências Consultoria.
Em evento no início do mês, quando foi homenageado como personalidade econômica do ano pelo grupo empresarial Lide, Campos Neto comemorou a desaceleração da inflação, que chegara a 10,06% em 2021, mas considerou que a luta ainda não está ganha. “Apesar de todas as conquistas, estamos cientes de que temos muito trabalho pela frente”, disse.
A inflação desenfreada esteve durante muito tempo associada à vida brasileira. Segundo dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), entre 1980 e 1989, os preços no país subiram, em média, 233% ao ano. Em 1989, no último ano do governo de José Sarney, o índice chegou a inacreditáveis 1 765%. O descontrole da remarcação de preços provocou danos imensos nas finanças públicas, das empresas e dos cidadãos, prejudicando ainda mais as pessoas pobres, já que a renda delas dificilmente acompanha a carestia. Diversos pacotes foram lançados, mas os preços em ascensão só seriam contidos pelo Plano Real, o processo de estabilização econômica instituído nos anos FHC, que acabaria quebrando a espinha dorsal da inflação e trazendo, pela primeira vez em muito tempo, tranquilidade ao país.
O BC chega ao fim de 2023 cumprindo a meta graças à aplicação de um remédio amargo, mas necessário: a elevação dos juros. A taxa básica Selic saiu do seu menor patamar histórico de 2%, em 2020, para 13,75%, em agosto de 2022 — nível em que ficou até agosto deste ano. A manutenção da taxa fez com que o presidente do BC recebesse uma enxurrada de críticas pela condução da política monetária. Umas mais sutis, como as do ex-presidente Jair Bolsonaro durante o ano eleitoral, que desejava juros menores para estimular a economia e conseguir mais votos. Já o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi — e continua a ser — ácido. Lula não deu trégua ao BC e a Roberto Campos Neto, pedindo celeridade nos cortes e questionando até mesmo a autonomia da instituição iniciada em 2021. A autoridade monetária não cedeu. Seguiu de forma técnica e independente seu plano de aguardar um processo contundente de desinflação para, aí sim, começar a reduzir as taxas.
Na quarta-feira, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) realizou o quarto corte consecutivo na Selic, baixando a taxa para 11,75%, o menor número em quase dois anos. No mesmo dia, o Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, manteve seus juros inalterados, na faixa de 5,25% a 5,50%, o maior nível desde 2001. Só depois de um ano e meio de aperto monetário é que o Fed indicou o início dos cortes, baseado em sinais de estabilização da inflação, apesar de haver ainda certo aquecimento na economia americana. Com isso, as bolsas mundo afora foram à euforia, e o Ibovespa, principal índice da B3, fechou perto de sua máxima histórica, a 129 000 pontos.
Como disse Campos Neto, a luta não está ganha e por isso a meta inflacionária será mais rigorosa em 2024, de 3% e com um limite de até 4,5%. Algumas pressões de preços bem claras no horizonte já mostram o desafio que será evitar escapadas do dragão da toca. Entre as pressões estão o aumento da alíquota básica do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) em seis estados do Sul e do Sudeste. Essa medida, já implementada pelos outros vinte estados no fim do ano passado, pode adicionar até 0,4 ponto porcentual à inflação do próximo ano, conforme cálculos da LCA Consultores. Considerando a projeção do Boletim Focus, um levantamento semanal feito com economistas, de uma inflação de 3,93% para 2024, com esse adicional o IPCA escalaria para 4,33%.
Os efeitos climáticos do El Niño também devem complicar a equação. Neste ano, o preço dos alimentos caiu graças à safra recorde colhida no campo. Mas isso não deve se repetir no próximo ano. “É importante reconhecer que o melhor momento dos alimentos ficou para trás. Esse parece ser o principal desafio para 2024”, diz o economista Igor Cadilhac, da carteira digital PicPay. Os efeitos climáticos são incontroláveis e, por isso, é preciso que as autoridades coloquem as rédeas nas variáveis que podem ser domadas, como o risco fiscal. Aí é que mora um grande perigo, especialmente considerando que 2024 é ano de eleições e, portanto, de impulsos por gastos no mundo político.
O governo vai encerrar o ano com um déficit projetado de 177 bilhões de reais, equivalentes a 1,7% do PIB, e as promessas de zerar o déficit em 2024 estão cada vez mais distantes. Apesar dos esforços do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aumentar a receita via aprovação no Parlamento de pautas arrecadatórias (na semana foram aprovadas as taxações de investimentos financeiros no exterior e de fundos exclusivos dos ricos), isso não deve ser suficiente. Haddad enfrenta constante fogo amigo a sua conduta da política econômica. A presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, defendeu um déficit de 1% a 2% do PIB para impulsionar o crescimento econômico. Pior, o presidente Lula, por sua vez, bradou que o setor público deve ampliar sua dívida. “Por que este país não pode se endividar para crescer?”, disse. São receitas que já foram usadas nos governos petistas anteriores, com resultados funestos e, claro, inflacionários. “O desenho do novo arcabouço não permite que o ajuste seja feito apenas pela receita, eles terão que lidar com reajustes nas despesas”, diz Alexandre Manoel, economista-chefe da gestora de fundos AZ Quest e ex-secretário do Ministério da Economia. A ala política do governo reluta em realizar cortes, pois afetariam investimentos do PAC e emendas parlamentares não impositivas em ano de eleições municipais.
Recentemente, Haddad criticou a postura “durona” do BC quanto ao corte dos juros. Um indicador justifica, em parte, o apelo do ministro: o Brasil tem a segunda maior taxa real de juros do mundo — calculada pela diferença entre juros e inflação, essa taxa está agora em 6,1% ao ano. Haddad lançou até uma provocação a Campos Neto, dizendo que o Banco Central “precisa fazer seu trabalho” com o corte da Selic para estimular o crescimento. Segundo o ministro, o crescimento seria responsável por aumentar a arrecadação e acomodar a ambiciosa meta fiscal de 2024. Apesar da cobrança recorrente, na verdade, é Haddad quem precisa desempenhar o seu papel. Dos dois lados do barco da política econômica, o monetário rema, enquanto o fiscal — sob responsabilidade do ministro — não tem conseguido ajudar. “À medida que a dívida continua a aumentar, todas as incertezas relacionadas à sustentabilidade fiscal se refletem, notadamente, na taxa de câmbio. A taxa de câmbio desempenha um papel crucial na formação do cenário inflacionário”, diz Bráulio Borges, especialista em contas públicas do instituto FGV-Ibre e da LCA Consultores. Segundo ele, se não fossem os recentes ruídos em torno da meta fiscal do próximo ano, proferidos pelo próprio presidente Lula e sua “corriola” política, o câmbio brasileiro poderia estar em torno de 4,50 reais por dólar, refletindo potencialmente numa menor inflação para este e para o próximo ano. A moeda americana fechou a última quarta-feira cotada a 4,92 reais.
Infelizmente, o governo parece ignorar o impacto da política fiscal na trajetória da inflação, já que as expectativas de investidores e empresários com o cenário das contas públicas se refletem nos preços. Se a condução for negativa, por consequência, ela afeta o ritmo imprimido pelo BC aos cortes da taxa Selic. No limite, as desconfianças têm o potencial de interromper o ciclo de alívio dos juros, desviando a projeção atual de fechar o próximo ano com a taxa básica em 9,25% ao ano. Ou seja: um tiro no próprio pé. “Uma possível piora na área fiscal pode influenciar negativamente a Selic”, avalia Sergio Goldenstein, ex-diretor do Banco Central e estrategista-chefe da gestora Warren Investimentos. Mas há ainda mais um fator de imprevisibilidade: a troca de comando no Banco Central, com o fim do mandato de Roberto Campos Neto em dezembro de 2024. É uma soma de motivos que deveria levar o governo a procurar maneiras de gerar confiabilidade nos rumos — e não seguir na direção oposta. Ao não contribuir para o equilíbrio, acaba colhendo resultado contrário a seus objetivos para a economia brasileira, incluindo o desejo de um juro menor. Pior para o país, que pode usufruir do controle momentâneo da inflação, mas vive ainda — graças a discursos desnecessários, inoportunos e irresponsáveis — em meio à incerteza.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872