Bilionários brasileiros doam seis vezes menos do que poderiam
Enquanto Bill Gates, Warren Buffett e outros americanos destinam fortunas para a filantropia, os brasileiros ricos não veem incentivos para isso

Um abismo separa a disposição à filantropia de bilionários americanos e brasileiros. Enquanto nos Estados Unidos algumas das pessoas mais ricas do mundo, como Bill Gates e Warren Buffett, prometem distribuir para causas sociais diversas quase toda a sua fortuna (no caso do fundador da Microsoft, ainda em vida), no Brasil o volume de doações e o engajamento dos mais ricos para incentivar outros a fazer o mesmo estão muito abaixo do potencial. Por aqui, o total destinado à filantropia gira em torno de 4,8 bilhões de reais anuais — e poderia ser de ao menos 28 bilhões de reais, segundo estimativa feita pelo Instituto Beja, especializado no fomento à filantropia, que coloca em proporção o PIB brasileiro, o número de bilionários no país (69) e o valor do seu patrimônio conjunto (1,16 trilhão de reais). Em comparação, em 2024, só os 25 maiores filantropos americanos somaram o equivalente a impressionante 1,3 trilhão de reais em doações totais, um aumento de 165 bilhões de reais em relação a 2023.
Há avanços, sem dúvida. O número de indivíduos, famílias e empresas pertencentes ao 0,1% mais rico da população, os detentores de patrimônio acima de 26 milhões de reais, que destinam recursos para a filantropia vem aumentando nas últimas décadas. Isso pode ser comprovado pelo ritmo de criação de fundos patrimoniais, o meio preferido para fazer doações dos 200 000 brasileiros que estão nessa faixa de renda. Esses fundos, os chamados endowments, normalmente permitem que apenas os rendimentos sejam resgatados periodicamente, de forma a garantir recursos para causas de interesse público de forma sustentável e a longo prazo — diferentemente de ações pontuais ou emergenciais, como em caso de desastres ambientais.
Antes do ano 2000, o número de fundos patrimoniais no Brasil não passava de dez. Em 2023, já existiam 112, com patrimônio líquido de quase 136 bilhões de reais. Um único fundo, o da Fundação Bradesco (criado no longínquo ano de 1956), concentra mais de 50% desse total. O rendimento anual desse montante, disponível para aplicação nos projetos, é de cerca de 3,2 bilhões de reais.
Em comparação, só o fundo patrimonial filantrópico da fundação criada por Bill Gates e sua ex-mulher Melinda, por exemplo, tinha o equivalente a 418 bilhões de reais em 2023 — o triplo do valor acumulado em todos os fundos patrimoniais brasileiros. Em 2024, três anos após a separação do casal, a Fundação Bill e Melinda Gates foi renomeada para Fundação Gates. Ela deixou o cargo de copresidente e passou a atuar por meio da própria instituição, a Pivotal Ventures, voltando-se para projetos de empoderamento feminino. Gates, por sua vez, resolveu radicalizar na generosidade. Em maio deste ano, ele prometeu doar 99% de sua fortuna pessoal (estimada em 108 bilhões de dólares, o equivalente a 595 bilhões de reais) em vida ou testamento. A ideia é aplicar todo o dinheiro em projetos beneficentes na África até 2045, quando a Fundação Gates deixará de existir, com o objetivo de causar o maior impacto social possível em pouco tempo.

A decisão é também uma forma de Gates liderar pelo exemplo e dar um novo impulso a uma iniciativa que ele criou em 2010. Trata-se do The Giving Pledge, uma espécie de clube de bilionários que se comprometem a doar a maior parte de suas fortunas à filantropia. Já são 245 os signatários, entre os quais o investidor Warren Buffett (que prometeu doar 99% do seu patrimônio de cerca de 152 bilhões de dólares) e MacKenzie Scott, cofundadora da Amazon e ex-mulher de Jeff Bezos (que vai distribuir metade dos seus 38 bilhões de dólares).
No Brasil, existiu uma tentativa de incentivar os bilionários a aderir ao movimento. Paula Fabiani, presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), conta que ela, o empresário Elie Horn, fundador da construtora Cyrela, e José Luiz Setubal, acionista do Itaú, tentaram trazer o Giving Pledge para o Brasil, mas a iniciativa não foi adiante. “Conversamos com vários bilionários brasileiros, mas percebemos que há o desejo dessas pessoas de não se expor — e o Giving Pledge é público”, afirma Paula. Com uma fortuna estimada em 3 bilhões de reais, Elie Horn e sua mulher, Suzy, são os únicos brasileiros que aderiram ao Giving Pledge. Em 2015, eles prometeram doar 60% do seu patrimônio. Embora não tenha criado um fundo patrimonial, Horn criou várias iniciativas filantrópicas, como o Movimento Bem Maior, uma associação que conecta investidores a movimentos sociais, e o Instituto Liberta, que luta contra a exploração sexual de crianças e adolescentes.
Na avaliação de Paula, falta ao Brasil uma cultura de doação — e também faltam condições mais propícias para isso. Há desconfiança por parte dos doadores quanto à idoneidade ou à orientação político-partidária das lideranças das instituições filantrópicas. Ela também aponta o baixo conhecimento sobre o terceiro setor, a dificuldade de acompanhar os projetos beneficiados, a ausência de redes e ecossistemas colaborativos e a falta de incentivos fiscais especialmente para pessoas físicas como fatores que freiam a filantropia.

A tradição de filantropia nos Estados Unidos não é um capricho da história. Os milionários são empurrados para o caminho da doação, já que, na outra ponta, há um imposto pesado sobre transmissão de herança, que pode chegar a 40%. Ao criar uma fundação, o milionário tem isenção do tributo. O Brasil, ao contrário, possui um dos menores impostos sobre herança do mundo. Varia de 2% a 8%, dependendo do estado. O país tem um longo caminho a percorrer, tanto em mentalidade quanto em incentivo, para tornar a filantropia uma prática recorrente.
Publicado em VEJA, junho de 2025, edição VEJA Negócios nº 15