A China inventou o papel-moeda mais de 1 000 anos atrás e está sendo a primeira grande nação a descartá-lo — quase não se usa dinheiro vivo nos principais centros urbanos do país. Se o novo coronavírus nasceu realmente de comida vendida no mercado de víveres e carne de Wuhan, tal transação talvez tenha sido efetuada com a leitura de um QR code por smartphone. Usando aplicativos como AliPay e WeChat Pay, os chineses compram de tudo, até frutas e verduras na feira. Pois a adesão maciça ao meio eletrônico, consolidada na última década, foi o sinal de que as autoridades precisavam para eliminar o dinheiro físico e substituí-lo pelo e-yuan, a moeda corrente digital.
É verdade que a China não largou na frente. As Bahamas já têm sua versão. Camboja e Suécia avançam, mas nada se compara à dimensão da segunda maior potência econômica do planeta, com uma população de mais de 1,4 bilhão de habitantes. Desde que o bitcoin foi lançado, em 2009, o gigante asiático não para de perseguir o objetivo de ter uma moeda digital soberana. A tecnologia está em análise desde 2014, mas o primeiro grande passo foi dado em fevereiro, às vésperas das celebrações do ano-novo lunar, quando o Banco Popular da China distribuiu, por sorteio, pacotes de 200 e-yuans (cerca de 170 reais) a dezenas de milhares de pessoas.
A moeda digital soberana é diferente de uma criptomoeda. O bitcoin, por exemplo, independe do Estado e sua flutuação ocorre em função de sua demanda descentralizada. Também os meios de pagamento eletrônicos, como o cartão de débito e o Pix, para ficar com um exemplo brasileiro, são apenas transferências virtuais. A moeda corrente digital, entretanto, é como uma cédula impressa pelo banco central: tem lastro na economia e só flutuará em compasso com ela. Portanto, para cada e-yuan emitido, um yuan físico será cancelado.
Mas por que, afinal, a China acelera a implementação do dinheiro eletrônico agora? O Banco de Compensações Internacionais, reconhecida autoridade financeira, identifica uma tendência global (veja no quadro) da qual o Brasil também faz parte. Em contraposição, analistas afirmam existir um outro interesse: o governo autoritário da China quer aumentar o controle sobre sua população e sobre transferências ilegais de fundos. “A meta é apenas substituir o papel-moeda internamente”, assegura Li Bo, alto funcionário do Banco Popular da China. O FED, banco central americano, vê o e-yuan como uma ameaça ao dólar, divisa hegemônica em operações de câmbio, hoje utilizado em 88% das transações. Para alimentar a onda, atletas e turistas estrangeiros serão convidados a adquirir e-yuans durante os Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim em 2022. O câmbio poderá ser feito pelo celular, e uma nova era terá nascido.
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735