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Como a aliança Renault-Nissan degringolou sem o comando de Ghosn

O executivo reaparece, ataca a Justiça do Japão e expõe de forma implacável maus resultados depois de sua saída das empresas

Por Larissa Quintino Atualizado em 4 jun 2024, 15h08 - Publicado em 10 jan 2020, 06h00

Catorze meses após ser preso no aeroporto de Tóquio acusado de crimes financeiros, Carlos Ghosn, o ex-comandante da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, quebrou o silêncio — e fez isso com estardalhaço. Em uma sala lotada de jornalistas internacionais reunidos em Beirute, Ghosn deu sua versão sobre a espetacular fuga do Japão até o Líbano, atacou o sistema judiciário daquele país e vociferou contra subordinados da Nissan que teriam montado um complô contra ele, preocupados com a perspectiva de a empresa ser engolida pela parceira francesa em um processo de fusão. Em meio à apresentação de documentos que, em seu ponto de vista, provam sua inocência, o executivo foi particularmente mordaz ao comentar a situação atual das companhias que comandou. “Disseram que queriam virar a página Ghosn, e conseguiram. De fato, não há mais aliança, mas também não há mais avanço tecnológico, não há mais inovação”, atacou.

Nascido na cidade de Porto Velho, Rondônia, em uma família de imigrantes, Ghosn tem nacionalidade brasileira, francesa e libanesa. Refugiado no país em que viveu sua infância, o executivo não esconde sua obsessão de reconstruir sua reputação. Para isso, não se furtou a expor a incompetência de seus sucessores como forma de exaltar a própria superioridade na gestão dos negócios — e reforçou a ideia de que foi alvo de traidores temerosos de mudanças mais radicais que pudesse realizar. “As pessoas que me prejudicaram estavam insatisfeitas com os rumos que a aliança tomava”, declarou.

O desempenho das duas empresas mostra que o período pós-Ghosn foi, de fato, ruim para a Nissan e para a Renault. Desde a saída dele, a montadora japonesa — pivô do escândalo que levou à sua prisão — perdeu mais de 11 bilhões de dólares (44 bilhões de reais) em valor de mercado e teve dois executivos-chefe, sendo que um deles, Hiroto Saikawa, renunciou após acusações de negociações ilícitas. A Renault trilhou caminho muito semelhante, com perda de 5 bilhões de euros (22 bilhões de reais) e também dois CEOs no período. Thierry Bolloré, sucessor imediato de Ghosn, foi demitido pelo conselho de administração da companhia em outubro, por não conseguir realizar a fusão entre a companhia francesa e o grupo ítalo-americano Fiat-Chrysler (FCA). A enrolada negociação com acionistas da Renault (entre eles o governo francês) levou a FCA a desistir da iniciativa e partir para uma associação com uma concorrente direta da companhia, a também francesa Peugeot-Citroën (PSA).

Em seu pronunciamento em Beirute, o executivo brasileiro lembrou que, durante sua gestão, as conversas para a realização da fusão já estavam avançadas e havia até data marcada para fechar o negócio, em janeiro de 2019. “É inacreditável que os executivos da Renault tenham perdido a oportunidade de se tornarem dominantes no mercado europeu”, disse Ghosn. Agora juntas, a FCA e a PSA passaram a ser o quarto maior grupo automotivo do mundo, logo atrás da aliança Renault-Nissan (a Volkswagen é a maior e a Toyota ocupa a vice­-liderança). E, para desgosto de Ghosn, o executivo-chefe do novo conglomerado FCA-PSA é o português Carlos Tavares, que ele demitiu da Renault em 2013.

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CERCO FECHADO – A esposa de Ghosn, Carole: mandado de prisão no Japão
CERCO FECHADO – A esposa de Ghosn, Carole: mandado de prisão no Japão (Mohamed Azakir/Reuters)

O retrato pouco abonador da Renault-Nissan desenhado por Ghosn não é novidade para os conhecedores das marchas e contramarchas do mercado automobilístico global. Ainda que tenha mantido sua posição no ranking geral de fabricantes, a aliança registrou queda de 6,1% nas vendas mundiais em 2019 — no Brasil, a Renault teve um bom desempenho graças ao subcompacto Kwid, e a Nissan permaneceu estável, sustentada pelo SUV Kicks, ambos modelos gestados ainda sob a liderança de Ghosn. A explicação para a acefalia que acometeu o alto-comando da aliança é que, com a saída do executivo brasileiro, a chefia global de cada empresa seguiu rumo próprio e optou-se pela tomada de decisões baseada em consenso, sem que nenhum executivo ou mesmo acionista se envolvesse na busca concreta de resultados. “Desde meados do ano passado, a aliança criada para cortar custos e economizar com sinergias só existe no nome”, diz o analista Christopher Richter, da consutoria CLSA.

Ghosn sonhava fundir Renault e Nissan em um único conglomerado em 2022, se possível com a Fiat-Chrysler junto. Hoje enfrenta quatro denúncias na Justiça japonesa, entre elas a de ter sonegado impostos sobre cerca de 44 milhões de dólares, metade da remuneração que teria recebido entre 2010 e 2015, incluindo bônus e salários. Na terça-feira 7, sua esposa, Carole, foi alvo de um mandado de prisão pedido pelos promotores japoneses por falso testemunho. Mesmo com sua trajetória espetacular e a sucessão de problemas enfrentados pela Renault-­Nissan depois de sua saída, não será nada fácil para o executivo transformar seu brilhantismo em certidão de idoneidade. Assim como ocorre com as empresas que comandou, seu rumo é indefinido.

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Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669

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