Como a Câmara se prepara para votar a liberação dos cassinos
No governo, o tema é cercado de polêmicas; apoiadores e opositores lutam para fazer valer sua posição
Com as atenções voltadas para a movimentação que cerca os preparativos paras as eleições de outubro, uma mobilização discreta porém intensa se desenrola nos bastidores do Congresso desde o último trimestre de 2021. Trata-se do esforço para a votação do Projeto de Lei 442/91, cujo regime de urgência foi aprovado na Câmara dos Deputados às vésperas do recesso parlamentar, em 16 de dezembro. A medida propõe a legalização da exploração econômica do jogo no país, proibida desde abril de 1946, por decisão do presidente Eurico Gaspar Dutra. No início da semana, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), se comprometeu com o relator Felipe Carreras (PSB-PE) a levá-la ao plenário até o início de março. O tema, no entanto, é altamente controvertido dentro do governo. O próprio presidente Jair Bolsonaro já se disse contrário à aprovação, preocupado com o impacto que possa provocar entre seus apoiadores mais conservadores e religiosos.
Mesmo com essa declaração, não se deve apostar, no entanto, contra a aprovação do projeto. O grupo de simpatizantes da legalização tem cacife e nomes de peso, incluindo Lira, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, os integrantes do Ministério da Economia, do Turismo, e até os filhos do presidente, Flávio e Eduardo Bolsonaro, que se reuniram com o ex-presidente americano Donald Trump para tratar do apoio na atração de investimentos da indústria de cassinos americana para o Brasil. Do lado oposto, a base evangélica no Congresso se posiciona pela manutenção da proibição, assim como a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. “Sou contra a legalização dos jogos de azar porque temo que essas casas de jogos sejam usadas para esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro”, diz Damares. “A liberação dos jogos não é a única alternativa que temos para gerar empregos no Brasil.” A mesma linha é seguida pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). “Se o tema for a plenário, o governo encaminhará voto contra.”
Entre as nações que fazem parte do G20, a organização que reúne 80% da economia global, apenas três países proíbem a exploração dos jogos — Brasil, Arábia Saudita e Indonésia, os dois últimos muçulmanos. Em um cenário de dificuldades econômicas como o atual, os dados compilados pela Frente Parlamentar Mista organizada para discutir o assunto impressionam. A legalização dos jogos no país teria o potencial de gerar 658 000 empregos — entre os anos 1930 e 1940, o auge dos cassinos no Brasil, o setor garantia mais de 40 000 postos. “Em um país que precisa desesperadamente criar empregos e que há décadas tem crescimento estagnado, não há justificativa para que o jogo continue na ilegalidade”, argumenta o deputado Bacelar (Podemos-BA), presidente da frente parlamentar.
No setor de turismo, cuja geração de riqueza patina na casa dos 8% do PIB e que não conseguiu se expandir nem mesmo com a realização da Copa da Mundo e das Olimpíadas, as perspectivas de expansão são fundamentadas na experiência internacional, particularmente na Ásia. “Macau recebia 10 milhões de turistas antes dos investimentos em cassinos e passou a receber 31 milhões. Singapura foi de 9 milhões a 21 milhões de turistas. São êxitos que mudaram a matriz do fluxo turístico internacional”, diz Carreras, relator do projeto na Câmara. “O Brasil é carente em novos produtos turísticos e nosso contingente de visitantes estrangeiros segue estagnado abaixo de 7 milhões.”
Além disso, o país perde em arrecadação de impostos com a ilegalidade e com operações que são baseadas — e tributadas — em outros países. Estima-se que o jogo ilegal movimente 27 bilhões de reais por ano, frente aos 17,8 bilhões de reais das lotéricas. E, em 2018, foi aprovada uma lei para a liberação do mercado de apostas virtuais, que tem data-limite para ser regulamentada até o fim deste ano. Em paralelo, diversos sites baseados no exterior já oferecem jogos de cassinos e de apostas esportivas aos brasileiros via internet. Entre 2018 e 2020, o setor de apostas esportivas cresceu de 2 bilhões de reais para 7 bilhões de reais e a presença dos sites de apostas é tão forte que, dos times que jogaram a primeira divisão do Campeonato Brasileiro de 2021, apenas o Cuiabá não tinha patrocínio dessas empresas. Isso para não falar da publicidade na televisão e às competições. “O mercado está absolutamente consolidado e em franca expansão. O que falta é a regulamentação, com regras claras, para a operação baseada no Brasil”, diz André Gelfi, CEO da plataforma de apostas eletrônicas Betsson no país.
Em meio ao cabo de guerra político, os defensores do jogo, entre eles integrantes do Ministério da Economia, acreditam que o desfecho mais provável envolverá um certo jogo de cena. O presidente Jair Bolsonaro disse em entrevista a VEJA no ano passado que, caso o projeto fosse aprovado pelo Congresso, ele vetaria. Mas auxiliares próximos admitem que, mesmo que isso aconteça, se trata de um posicionamento para agradar a seus eleitores mais conservadores. Uma vez manifestada sua posição, ele apenas assistiria ao Congresso derrubar o veto. “A maioria esmagadora do governo é favorável. O presidente, publicamente, diz que não é, mas não deve intervir na decisão do Parlamento. O ambiente é propício para isso, ainda mais agora com o ministro Ciro Nogueira próximo ao presidente”, diz um auxiliar palaciano. Nogueira é uma das poucas vozes fortes do governo que não fala abertamente sobre o tema, como forma de evitar constranger o presidente ou os seus pares da ala mais fundamentalista, mas ele tem cacife para atuar de forma eficiente nos bastidores. A sorte está lançada.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777