O caminho para a recuperação econômica após o choque do coronavírus
Dificilmente o país vai superar o impacto se o governo não abrir os cofres e o debate sobre a retomada não for feito com equilíbrio
Guru dos tempos sombrios, o economista Nouriel Roubini, famoso por ter previsto a quebradeira dos bancos americanos em 2008, voltou à cena na semana passada e lançou seu vaticínio sobre o pânico econômico provocado pela pandemia do coronavírus. A profecia do Doutor Apocalipse, publicada em um artigo no jornal britânico The Guardian, é assustadora: segundo ele, nos próximos noventa dias, o planeta sofrerá de uma só vez todo o impacto sentido nos três anos que se seguiram à quebra do banco americano Lehman Brothers, marco zero da última grande crise. O cenário dantesco, desenhado com base no números de infecções e mortes provocadas pelo vírus que brotou na China, entretanto, não é uma exclusividade da imaginação e dos cálculos de Roubini. Longe de personificar um arauto tresloucado pregando para um grupo de cabras no deserto, Roubini é mais uma das vozes que se levantam para alertar sobre a gravidade do que espera a humanidade no futuro próximo.
Um dos reflexos desse sentimento foi a aprovação, no fim da noite de quarta-feira, pelo Senado americano, do mais vultoso pacote de estímulo econômico em tempos recentes, estimado em 2 trilhões de dólares, voltado principalmente para o amparo de cidadãos que venham a perder o emprego e sua fonte de renda a reboque da paralisação dos negócios provocada pela pandemia — o pacote agora segue para a Câmara dos Deputados, onde é praticamente certa sua aprovação. No Brasil, o frenesi é tal que o embate entre os que defendem a quarentena radical para evitar a disseminação do coronavírus e os que gritam pela priorização da economia ante pretensos exageros de cunho sanitário ganhou os contornos da polarização radical que divide o país nos últimos anos. Assustado com o que tem visto, o empresário Elie Horn, dono de um dos maiores gigantes do mercado imobiliário brasileiro, a Cyrela, aproveitou a chance de ter perto de si os ouvidos de Jair Bolsonaro em uma reunião recente para soprar um conselho: “Presidente, minha simples sugestão é que deixemos de lado o egoísmo e pensemos mais no próximo em nossa tomada de decisões”.
Ao contrário de outras crises econômicas, a atual não nasce de um colapso do mercado financeiro. A falta de liquidez — ou, deixando o economês de lado, de dinheiro — foi a grande causa das maiores crises de que se tem notícia, em 2008 e também em 1929. O choque atual é ainda pior porque tem origem na paralisação dos meios de produção mundo afora. Sem produção de bens e serviços não há geração de riqueza, e uma parada de doze meses poderia lançar a humanidade de volta à Idade Média. Daí a preocupação dos economistas e a dificuldade de avaliar com precisão o tamanho do tombo que a economia mundial sofrerá — levando junto, é claro, a brasileira.
Em um estudo ainda preliminar, a Fundação Getulio Vargas projeta, num cenário pessimista, que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil possa cair 4,4% até dezembro. Em 2009, no auge da última grande crise, a economia do Brasil retraiu-se apenas 0,3%, no episódio que ficou conhecido como marolinha, em contraste com o tsunami global. “Temos poucas referências sobre impactos de crises sanitárias como esta. Em princípio, parecem ser monumentais, mas, para mensurá-los, dependemos de uma estimativa sobre a duração da retração que temos pela frente”, diz Federico Servideo, sócio da consultoria PwC Brasil. “Se quisermos ser otimistas, poderemos pensar até em uma recuperação rápida, como já vem acontecendo na China, mas isso não é uma garantia”, explica. Em um cenário tão instável, as receitas para uma recuperação menos traumática não são nada óbvias.
Com as maiores cidades do país esvaziadas pela quarentena e a população fechada dentro de casa, aflita com a possibilidade de infecção, empresários abalados com a perspectiva de ver seus negócios naufragar se insurgiram contra as medidas de contenção sanitária. Junior Durski, dono da rede Madero, Alexandre Guerra, do Giraffas, o publicitário Roberto Justus e Luciano Hang, da varejista Havan, criticaram o chamado lockdown. De fato, as cenas vistas nas grandes cidades foram deprimentes. Ruas comerciais que viviam lotadas de consumidores agora estão às moscas. Os aeroportos de todo o país passarão a operar, na próxima semana, um total de esquálidos 170 voos diários, tamanha é a queda da demanda por viagens. As companhias aéreas despontam como as empresas mais machucadas pela parada brutal imposta ao país — e boa parte delas teme não resistir muito ao tombo que levaram. “Estamos em situação de guerra”, avalia John Rodgerson, presidente da Azul, a terceira maior companhia do setor no Brasil e que, como as concorrentes Gol e Latam, vai manter estacionada quase toda a sua frota de aeronaves por pelo menos um mês.
Apesar da defesa veemente da volta à atividade feita por muitos empresários — e, principalmente, pelo presidente Jair Bolsonaro —, não há comprovação de que esse seja um movimento seguro ou justificável do ponto de vista econômico. O economista italiano Luigi Zingales, professor da Universidade de Chicago, desenhou uma projeção, utilizando os Estados Unidos como objeto de estudo, de quanto custaria ao país a disseminação da doença num ritmo exponencial. Sem medidas de isolamento, apenas nos Estados Unidos, entre 160 milhões e 214 milhões de pessoas seriam infectadas no prazo de seis meses. Os gastos para cuidar desses indivíduos e evitar uma mortandade chegariam a 65 trilhões de dólares, o equivalente a três vezes o valor do PIB americano e trinta vezes mais que o pacote recém-aprovado de estímulo econômico.
Diferentemente do quarteto estridente, alguns líderes empresariais defendem uma posição mais branda. O presidente do grupo varejista Renner, Fabio Faccio, se alinha a essa vertente. A empresa, que tem 92% de suas lojas localizadas em shoppings, todos de portas cerradas, decidiu não demitir nenhum de seus 23 000 funcionários. “Só podemos pensar na saída dessa crise com a proteção dos empregos. Teremos perda de receitas, claro, mas somos uma empresa saudável e podemos fazer dessa forma”, explica. Tal posição, entretanto, depende da duração da crise. Se o chamado lockdown se prolongar, mesmo empresas de caixa robusto como a bilionária cadeia de lojas gaúcha se verão diante do dilema de demitir ou sangrar em uma hemorragia financeira. Pior é a situação de pequenos empresários. A Associação de Bares e Restaurantes de São Paulo estima que, se a quarentena forçada ultrapassar a primeira semana de abril, cerca de 10% dos estabelecimentos do setor não voltarão a abrir as portas nunca mais.
Colhido em meio a um drástico processo de ajuste de contas, reestruturação da máquina pública e redesenho tributário, o governo brasileiro nem chega perto de poder oferecer resgates de impacto como os propostos nas nações ricas. Mas isso não significa que a área econômica entrou em modo de inércia enquanto as discussões assumem contornos incendiários no país. Entre as medidas articuladas pelo Mistério da Economia está um projeto que permitirá a redução salarial do topo do funcionalismo público, e os recursos obtidos com tal medida serão transformados em um colchão para amortecer o impacto da crise entre trabalhadores informais e desempregados, num valor superior ao que já foi anunciado pelo ministro Paulo Guedes recentemente, de 191 reais por mês. O texto da medida está sendo preparado a quatro mãos: Guedes, apesar dos recentes desentendimentos com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pediu sua ajuda na construção do projeto. Mesmo distante do tamanho de ações internacionais, a medida deixa claro o tom a ser adotado daqui para a frente: todos precisarão absorver parte do impacto para evitar que os mais desfavorecidos suportem o fardo mais pesado sozinhos.
O projeto de redistribuir parte do salário dos funcionários de alto escalão deve se somar a outras ações adotadas pelo ministério, mas que ainda não saíram do papel — fato que preocupa, e muito. As medidas anunciadas, entre benefícios tributários a grandes empresas, antecipação de pagamento de aposentadorias e pensões e liberação de crédito, custarão 306 bilhões de reais, segundo cálculos da equipe econômica. Essa conta vai aumentar nas próximas semanas. “O governo precisa gastar o que for necessário para suportar essa crise e, como ele pode empenhar recursos extras com a ajuda do Congresso, não vai comprometer o Orçamento e a saúde fiscal dos próximos anos”, afirma o ex-ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto. Um dos consensos que existe na pandemia do coronavírus, compartilhado até por figuras pouco convencionais como o Doutor Apocalipse, Nouriel Roubini, é que o mundo não sairá da crise como entrou.
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680