O desmatamento é responsável por quase metade das emissões de dióxido de carbono (CO2) no Brasil, e o principal obstáculo para que o país cumpra a promessa de se tornar carbono neutro até 2050. O desafio é principalmente econômico: a preservação de florestas e o restauro de biomas destruídos têm alto custo e baixo retorno, enquanto atividades associadas à destruição florestal, como pecuária e exploração madeireira, garantem cifras abundantes. Nos últimos anos, empresas especializadas em restauração ecológica têm buscado corrigir essa disparidade, tornando projetos de reflorestamento em larga escala economicamente viáveis por meio do chamado mercado de carbono voluntário. O mecanismo permite que empresas compensem espontaneamente suas emissões de gases do efeito estufa comprando créditos de carbono — certificados que garantem que 1 tonelada de CO2 foi removida da atmosfera devido à ação de um projeto ambiental. À medida que esse mercado amadurece, projetos no Brasil têm chamado a atenção de grandes investidores e empresas multinacionais.
Recentemente, a companhia brasileira de reflorestamento re.green fechou um contrato com o gigante de tecnologia Microsoft para a venda de 3 milhões de créditos ao longo de quinze anos. Os certificados serão gerados pelo restauro de vegetação nativa em áreas de pasto degradado na Mata Atlântica e na Amazônia. Fundada em 2021 por pesquisadores da PUC-Rio e da Esalq-USP, a empresa tem como investidores a família Moreira Salles, de acionistas do Itaú Unibanco, e a gestora Gávea Investimentos, que tem como sócio o economista Arminio Fraga, e possui cerca de 8 500 hectares em fase de recuperação na Bahia, no Maranhão e no Pará. “A restauração ecológica em áreas degradadas é uma atividade cara, com grande investimento inicial, que não ocorreria caso não houvesse o crédito de carbono ajudando a gerar rentabilidade para a iniciativa privada”, diz Thiago Picolo, presidente da re.green.
A complexidade do projeto está em recriar a estrutura de uma floresta nativa, o que envolve trabalhos no solo, controle de pragas e o plantio de até 1 700 mudas por hectare. “Uma floresta primária é resiliente de um jeito que uma plantação monocultural não é”, afirma Picolo. O trabalho da Belterra, startup brasileira de reflorestamento criada em 2020, também busca oferecer uma alternativa economicamente viável à monocultura. A empresa implementa sistemas de agrofloresta, método de cultivo que integra árvores e culturas agrícolas no mesmo espaço para melhorar a saúde do solo. Em 2023, a startup assinou um contrato de 90 milhões de reais com a Amazon para gerar créditos de carbono por meio da implantação de 3 000 hectares de agrofloresta no Pará, com prazo de até quatro anos para a conclusão. “O carbono tem sido uma receita importante para dar escala aos projetos”, afirma Valmir Ortega, sócio da Belterra.
O voto de confiança de multinacionais como Microsoft e Amazon veio apesar do momento de ceticismo global em relação ao mercado voluntário de carbono, após fraudes terem posto alguns projetos em xeque. No ano passado, estudos indicaram que muitas iniciativas de conservação florestal — conhecidas como REDD+, que visam preservar as florestas em vez de reflorestar áreas degradadas — superestimaram seu impacto. “As informações nesse mercado ainda são escassas, e a falta de transparência se reflete em desconfiança”, diz Fernanda Valente, pesquisadora do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas. Como resultado, as transações no mercado voluntário global (veja o quadro) encolheram mais de 60% em 2023, em relação ao ano anterior, de 1,9 bilhão para 723 milhões de dólares, segundo dados da ONG Ecosystem Marketplace. A queda é ainda mais brusca em relação a 2021, no auge do mercado, quando as transações acumularam 2,1 bilhões de dólares.
Para as empresas do setor, o momento é de amadurecimento — investidores e companhias, afinal, estão aprendendo a distinguir entre créditos de boa e má qualidade. “Historicamente, o mercado de carbono está cheio de projetos malfeitos e algumas fraudes, mas estamos trabalhando para corrigi-lo”, diz Peter Fernandez, cofundador e presidente da startup de reflorestamento Mombak. Para assegurar sua operação, a companhia atraiu investidores internacionais de peso, como a empresa americana de investimentos privados Bain Capital, a seguradora francesa AXA e o fundo de pensão canadense CPPIB. “Nossos projetos não pertencem à Mombak, mas a alguns dos investidores mais sofisticados do mundo”, diz Fernandez. O argumento de autoridade permite à Mombak praticar preços acima da média dos pares. Em 2023, a empresa fechou um contrato de venda de créditos de carbono para a escuderia McLaren a mais de 50 dólares por tonelada de CO2 removido, ou cinco vezes o valor médio de projetos REDD+. Mais recentemente, também firmou acordos com Microsoft e Google, embora os valores não tenham sido divulgados.
Projetos dessa magnitude, porém, ainda são escassos no Brasil — e atendem sobretudo à demanda de companhias americanas e europeias. “Aqui, o mercado de carbono ainda é caro e restrito a grandes produtores e empresas”, afirma Leonardo Munhoz, advogado e pesquisador do Observatório de Bioeconomia da FGV. Espera-se que, com a instituição de um mercado regulado de carbono no país, as empresas reforcem suas metas de redução de emissão e, consequentemente, a demanda nacional por projetos de compensação aumente. Diferentemente do mercado voluntário, em que empresas compram créditos por escolha própria, o regulado exige que companhias de setores específicos atinjam metas de redução, adquirindo créditos para compensar eventuais excessos.
Esse tipo de mecanismo tem crescido no mundo. Segundo levantamento feito pelo Banco Mundial, existem 36 sistemas de comércio de emissões (SCE) ativos globalmente, em países como Estados Unidos, Austrália, China e Canadá. O mais robusto é o Comércio Europeu de Licenças de Emissão, que regula quase 40% das emissões da União Europeia. Agora, a UE já se prepara para um novo passo na precificação de carbono: o CBAM, uma espécie de imposto para produtos importados, que começou a ser implementado em 2023 e deve funcionar plenamente a partir de 2026. Ele aplicará tarifas sobre o carbono emitido durante a fabricação de mercadorias como aço, cimento, alumínio e fertilizantes — mas, se o país exportador tiver uma política de carbono similar, as tarifas poderão ser desconsideradas.
Ainda sem um mercado regulado de carbono, o Brasil corre o risco de ter suas exportações taxadas pelo CBAM. E mais: o país está perdendo a oportunidade de se consolidar como o líder global da transição para uma economia de baixo carbono. Segundo relatório da consultoria McKinsey & Company, detemos 15% do potencial global de remoção de carbono via reflorestamento — é o maior do mundo. Por isso, o Brasil poderia deixar de ser o sexto maior emissor de gases de efeito estufa e se tornar o único grande país “carbono negativo”, capturando mais do que emite.
Os projetos que precificam o carbono no Brasil estão parados no Congresso, em meio a uma disputa entre Câmara dos Deputados e Senado para determinar quem será o responsável pela criação da proposta. Atualmente, dois projetos de lei esperam para ser votados: o PL 412/2022, aprovado no Senado em outubro de 2023, e o PL 2148/15, aprovado pela Câmara dos Deputados em dezembro. Ambas as propostas criam o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), semelhante aos modelos da União Europeia, Austrália e Nova Zelândia. A ideia é que empresas que emitem mais de 25 000 toneladas de carbono equivalente por ano devem receber permissões de emissão, que podem ser obtidas do governo ou compradas no mercado. Nesse modelo, créditos de carbono do mercado voluntário também devem ser aceitos para ajudar no cumprimento das metas, em um percentual ainda a ser definido.
Também não está claro quais setores da economia serão impactados pela norma nem qual será a estrutura de distribuição e a auditoria das permissões. Embora ainda haja indefinições, o desenho do SBCE é recebido positivamente pelo mercado, que aguarda a sua aprovação. “Estamos perdendo tempo”, diz Raphael Niemeyer, advogado do escritório Stocche Forbes. “Precisamos aprovar um projeto logo para avançar para a fase de implementação, que demora cerca de cinco anos.” O governo espera que a proposta seja aprovada pelo menos até o ano que vem, em tempo para ser apresentada na COP30, a ocorrer no Pará em novembro de 2025. Enquanto não se tomam medidas para conter as emissões, o país segue capturando pouco e emitindo muito. A hora de precificar o carbono é agora.
Publicado em VEJA, outubro de 2024, edição VEJA Negócios nº 7