Criptotrambique: golpes de pirâmides financeiras se modernizam
Esquemas se sofisticam e agora usam rostos famosos e moedas como a bitcoin para escapar da regulamentação e fraudar investidores
Fonte de inspiração de milhões de fãs, Ronaldinho Gaúcho tenta repetir no mundo dos negócios os olés que dava em campo. Em uma dessas iniciativas empresariais, o Bruxo, como ficou conhecido na Espanha por causa de seu futebol mágico, tornou-se parceiro de uma empresa chamada 18K Ronaldinho, especializada em fornecer opções de aplicações financeiras que prometem lucros astronômicos. Com um aporte mínimo de 30 dólares, seria possível até quadruplicar o valor em 200 dias. Os depósitos, sempre em bitcoins, garantem ao investidor o direito de virar representante de vendas da marca de relógios 18K Ronaldinho, feitos na China. Essa estranha mistura de negócios é definida pelos responsáveis como “marketing multinível”. No entanto, o toque mágico do craque parece não ter sido suficiente e a empresa, há um mês, não tem liberado o acesso às bitcoins e sua comercialização, mesmo em contratos de investimento já encerrados. Os investidores lesados denunciaram a companhia à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e ao Ministério Público de São Paulo (MP-SP).
Todos os indícios sugerem que a 18K Ronaldinho é na verdade uma versão mais elaborada e tecnológica das antigas pirâmides financeiras baseadas no chamado Esquema Ponzi. Tais golpes, em inúmeras variações, recebem o nome de seu criador, o italiano Carlo Ponzi. No esquema, o lucro dos primeiros investidores é pago pelos que chegam depois, até o fluxo de entrada bater num teto incompatível com a remuneração de todos os investidores. Quando isso acontece, a pirâmide desaba. Com o estratagema, Ponzi passou para a história como um dos maiores estelionatários do século XX e, desde então, fraudes como essas são consideradas crime financeiro. Ronaldinho nega ter conhecimento de qualquer esquema irregular do negócio, de propriedade do empresário Marcelo Lara. Segundo seu representante, Sérgio Queiroz, o jogador assinou contrato com a marca de relógios 18K Watches, e o acordo não dizia nada a respeito de investimentos em criptomoedas. Entretanto, é possível encontrar na internet um vídeo no qual R10 promove a empresa 18K Ronaldinho. “Conto com você para fazer a maior empresa multinível do mundo. Vem pra tribo 18K Ronaldinho”, diz ele na gravação. Arrolado como testemunha no inquérito, Ronaldinho foi chamado para explicar seu envolvimento no negócio. Os procuradores paulistas agora devem ouvir os sócios da empresa, baseados no Rio de Janeiro.
O que chama atenção nas novas pirâmides é o uso das criptomoedas, divisas virtuais criadas para facilitar as transações na internet. As operações irregulares, de maneira geral, utilizam um modelo em que empresas com um volume muito grande de bitcoins negociam em diversas corretoras mundo afora. Como a bitcoin tem cotação variável, as companhias se valem de aplicações em locais onde o valor é mais vantajoso — o que só acontece pelo fato de as criptomoedas serem descentralizadas, sem um banco central para determinar sua cotação. O problema é que se trata de uma operação de altíssimo risco e que acarreta movimentações imprevisíveis, em que corridas aos saques são frequentes. Para piorar, os investidores têm pouca informação sobre por onde seus ativos circulam e não costumam declarar seus ganhos à Receita Federal, por isso não há meios para recuperar eventuais desvios. “Um cuidado básico para quem quiser se arriscar nesse negócio é procurar plataformas que deem transparência às transações”, afirma Caio Ramalho, pesquisador do assunto na FGV.
Todo negócio que envolve dinheiro virtual tem um risco intrínseco, como comprova a brutal queda no preço da bitcoin ocorrida em 2018, quando a cotação da moeda caiu para um terço do seu valor original — passou de 20 000 para 6 000 dólares (hoje está em 8 000 dólares). É natural que tal ambiente seja propício a investidores que não se importam em burlar os limites da legalidade em busca de ganhos vultosos — para eles, trata-se apenas de entender em que degrau do esquema da pirâmide estarão. E, nesse caso, os desdobramentos podem ser imprevisíveis. Em um episódio investigado pela polícia paulista, um empresário que perdeu o equivalente a 4 milhões de reais em uma operação foi preso sob a acusação de encomendar o sequestro do dono de uma corretora que intermediou a aplicação de seu dinheiro.
Situações como essa são exceção em um universo em que parcela considerável dos participantes é formada por investidores pouco experientes atraídos pela aparência de seriedade dos operadores. Nesse sentido, a publicidade é crucial para garantir o verniz de respeitabilidade. A Atlas Quantum, cujos saques foram interrompidos em agosto, deixando um rombo estimado em 100 milhões de reais, valia-se dos atores Cauã Reymond e Tatá Werneck como garotos-propaganda em inserções veiculadas na TV com promessas de ganho de 60% sobre os investimentos. Foram justamente os anúncios que chamaram a atenção dos peritos da CVM. Eles determinaram imediatamente a interrupção da propaganda. O órgão entendeu que a operação divulgada pela Atlas era uma oferta pública de contratos de investimentos coletivos (CIC), o que exige uma autorização do órgão.
A notícia caiu como uma bomba entre os cotistas, que iniciaram uma corrida para sacar seus recursos. Uma empresa saudável teria condições de honrar os compromissos. Não era o caso. Segundo um ex-diretor, o dono da Atlas, Rodrigo Marques, mantinha contas em corretoras de criptomoedas no exterior para investir os ativos dos clientes em seu próprio nome, e não conseguiu sacar os recursos por regras contra lavagem de dinheiro. A companhia confirma que adotava a prática no passado, mas que agora a Atlas apenas trabalha com contas institucionais. O fato é que mais de 1 200 bitcoins desapareceram: uma soma de 40 milhões de reais. O empresário carioca Sérgio Peçanha Ferreira Jr. tinha 40 bitcoins na Atlas, o equivalente a 1,3 milhão de reais. “Comecei com pouco, 1 bitcoin, mas os ganhos me levaram a renovar a aposta. Com a perda que tive, nem consigo mais dormir”, diz ele. A Atlas promete restabelecer os saques a partir de 21 de outubro. As assessorias de Cauã e de Tatá afirmam que os artistas firmaram contrato comercial e que, à época, não havia nada que desabonasse a empresa.
Também escorado em figuras públicas, o Grupo Bitcoin Banco, de propriedade de Claudio Oliveira, cresceu a reboque de uma ofensiva de marketing e acabou deixando um rombo de 70 milhões de reais para os investidores. Para impulsionar seu negócio, Oliveira comprou um espaço no programa de Amaury Jr., na RedeTV!, aos sábados, e se aproximou do apresentador Ratinho, do SBT. Ambos eram convidados a conferências e jantares para elogiar o empresário, que se vendia como um milionário com negócios e propriedades na Europa. Em seu programa, Amaury falava sobre sua conta aberta no grupo e, em eventos, Ratinho discursava sobre a personalidade vencedora de Oliveira. “É desagradável”, diz Amaury. “A pessoa me vê falando bem do cara e toma um calote. Suspendemos o acordo desde que a fraude estourou”, justifica. O contrato publicitário com a RedeTV!, de cerca de 500 000 reais, nunca foi pago. “Ele fechou um acordo no qual promete nos pagar em doze parcelas”, conta Amaury. Ratinho diz que foi levado aos encontros por um amigo. “Fui a dois eventos, um no Hotel Unique e o outro em um jantar no Figueira Rubaiyat, ambos em São Paulo”, recorda. “Para mim era um dos muitos empresários que usam a imagem de alguém famoso”, argumenta. O Grupo Bitcoin ruiu quando Oliveira fez denúncia de que uma suposta fraude nos sistemas da empresa provocara a perda de 50 milhões de reais. Esse seria o motivo, segundo ele, da falta de liquidez que impediu a retirada de recursos por parte dos clientes. Investigado pela Justiça Federal no Paraná, Oliveira está com seu passaporte retido — ele se recusou a falar com VEJA. Para quem perdeu dinheiro as notícias não são boas. “A chance de reaver os investimentos em criptomoedas é remota. Depois de a pirâmide quebrar, torna-se difícil localizar bens da entidade fraudulenta”, afirma Paulo Brancher, do escritório Mattos Filho. A lição que fica é que, seja no mundo analógico, seja no virtual, a promessa de lucro é sempre proporcional aos riscos de perda.
Com reportagem de Lucas Cunha
Publicado em VEJA de 23 de outubro de 2019, edição nº 2657