O sol já se punha em Brasília na terça-feira 14, quando o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, foi chamado ao Palácio do Planalto. Percorrer o trajeto entre o edifício da empresa na capital e a sede do poder Executivo federal não leva mais que cinco minutos de carro, tempo suficiente para Prates imaginar que seus dias à frente da petrolífera haviam acabado. “O que Lula pode querer, se não a minha cabeça?”, pensou. Quando chegou ao gabinete presidencial, encontrou o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, e o de Minas e Energia, Alexandre Silveira, ao lado do presidente. Eram eles, Costa e Silveira, seus maiores detratores no governo. A composição da sala imediatamente comunicou o que ninguém ainda havia verbalizado: Prates seria mesmo descartado. “Vou precisar do seu cargo”, disse Lula, lacônico. “E já chamei a Magda (Chambriard) para o seu lugar.”
O presidente Lula justificou a decisão por divergências entre os dois. Para ele, o episódio de distribuição dos dividendos extraordinários da empresa, em que Prates se absteve, contrariando a indicação do Planalto de votar contra o pagamento, foi inaceitável. Os dividendos extras são a fatia adicional ao mínimo definido em estatuto que a Petrobras vinha distribuindo dos lucros aos acionistas nos últimos anos. Além disso, o plano de investimentos da estatal previa 5 bilhões de dólares no primeiro trimestre, mas lacunas na cadeia mundial de fornecedores, ainda decorrentes da pandemia, só permitiram o desembolso de 3 bilhões de dólares. Houve também uma diminuição do lucro líquido no período. A queda na venda de combustíveis no mercado interno, a desvalorização do real frente ao dólar e a redução do preço do petróleo levaram ao resultado financeiro negativo de 9,6 bilhões de reais. “Minha missão foi precocemente abreviada na presença regozijada de Alexandre Silveira e Rui Costa”, escreveu Prates em mensagem de despedida endereçada aos diretores da estatal, ainda na noite de terça-feira. De fato, Silveira e Costa tiveram papel ativo na saída do presidente da Petrobras, enquanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, era a voz sensata que se opunha à guilhotina. “Saio como entrei: pela porta da frente e de cabeça erguida. Tenho certeza do dever cumprido”, disse Prates a VEJA.
A demissão de Prates é o retrato preciso de como os governantes de plantão tratam a maior e mais valiosa empresa do país. Desde 2015, a Petrobras teve nove presidentes, o que dá a média execrável de uma troca de comando a cada ano. Seria difícil imaginar uma companhia privada que resistisse a tanta instabilidade, o que só demonstra a colossal capacidade da petrolífera para sobreviver mesmo diante das recorrentes interferências políticas. “A relação do governo com a Petrobras não é saudável, a pressão é bastante grande”, afirma José Mauro Coelho, que ficou apenas 68 dias como chefe da estatal em 2022 — o segundo menor período desde o fim da ditadura militar —, durante o governo Bolsonaro. “O problema disso é que o tempo do presidente da empresa é muito utilizado para trabalhar questões políticas em detrimento de questões mais técnicas.”
A sucessão de Prates já está definida: a cadeira da presidência da Petrobras será ocupada por Magda Chambriard, ex-diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Trata-se da segunda mulher a chefiar a petrolífera, depois de Maria das Graças Foster, que permaneceu no cargo de 2012 a 2015. A gestão de Chambriard na ANP foi marcada pela retomada dos leilões de áreas para exploração e produção de petróleo, e pelo vazamento de óleo durante a perfuração de um poço na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro. Em artigos publicados na revista digital Brasil Energia, a futura presidente da Petrobras demonstrou por diversas vezes sintonia com a visão desenvolvimentista do governo petista, defendendo a exploração de petróleo na foz do Amazonas e criticando os processos de licenciamento do Ministério do Meio Ambiente.
Entre outras iniciativas, Chambriard deverá aumentar os investimentos da estatal para ampliar a oferta de empregos e, ao mesmo tempo, segurar o preço dos combustíveis, exatamente como quer Lula. “Na prática, Prates foi demitido pelo mesmo motivo que outros presidentes: ele não estava cumprindo as vontades do governo ou não estava atendendo na velocidade que Lula queria”, diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura e ex-assessor na ANP. “Se Magda não fizer o que o governo mandar, vai sair também.” Outros executivos deverão cair junto com Prates — Sergio Caetano Leite, que era o diretor financeiro, já foi cortado. Ex-conselheiro da Petrobras, o economista Marcelo Mesquita conhece bem os meandros da empresa. “A instabilidade da gestão é péssima para o dia a dia da Petrobras”, diz Mesquita. “Muita gente vai sair e quem entrar demora para entender como funciona a Petrobras. Daqui a seis meses, quando tiverem aprendido tudo, é possível que a gestão seja trocada novamente.”
A Petrobras é uma panela de pressão inclusive porque se trata de uma empresa de capital misto. Ao mesmo tempo que tem o governo como maior acionista, é listada em bolsas de valores aqui e no exterior. O desafio é se posicionar entre esses dois interesses que, no mundo ideal, não deveriam ser conflitantes. Sendo o Brasil o país que é — com governantes populistas que agem apenas de acordo com seus objetivos políticos particulares, e não necessariamente os do país —, a empresa acaba exposta aos anseios predatórios dos homens que comandam a nação. Foi assim com Bolsonaro e é desse jeito que funciona com Lula. Ou seja: o governo quer usar a petrolífera para fazer política, quando deveria apenas usufruir, como maior acionista, dos retornos financeiros que a empresa costuma trazer. Bons exemplos não faltam. A estatal norueguesa Equinor, também petroleira, registra lucros substanciais ano após ano e sempre abasteceu o governo do país nórdico com dividendos, mas sem tomar parte do jogo político local.
No caso petista, há um agravante: o histórico de corrupção protagonizado pela estatal em gestões passadas. Agora, a vontade do mandante para a Petrobras é clara: voltar a investir em refinarias e estaleiros. Isso foi feito antes — e com o pior resultado possível. O governo já anunciou aportes na Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e planeja fazer o mesmo no complexo petroquímico Comperj, no Rio de Janeiro, dois empreendimentos que se tornaram símbolos de corrupção durante a Lava-Jato. A ajuda a estaleiros também está a caminho. “Quero que vocês tenham certeza que a gente vai recuperar a indústria naval brasileira”, disse o presidente Lula em um evento em Niterói, no Rio de Janeiro, no início de abril.
O que estaria por trás dessa obsessão? Ainda em 2010, Lula deu um tiro na água com a Sete Brasil, criada para fornecer sondas à Petrobras. Com fundos de pensão estatais como sócios, a empresa foi investigada por corrupção e acabou quebrando, com dívidas bilionárias. Foram prometidos 28 navios-sonda para exploração do pré-sal, mas apenas quatro foram entregues, num flagrante desperdício de dinheiro público. O estrago foi devidamente contabilizado: um relatório do Tribunal de Contas da União apontou que o Brasil perdeu 25 bilhões de dólares ao tentar ressuscitar a indústria naval.
Um dia após a demissão de Prates, a Petrobras perdeu 34 bilhões de reais em valor de mercado, cifra que equivale à avaliação de uma empresa como a Hapvida, maior operadora de planos de saúde do Brasil. Concentrar investimentos em projetos duvidosos, além de ser um caminho aberto para a corrupção, também penaliza os quase 1 milhão de acionistas da Petrobras. “É possível que uma agenda maior de investimentos em atividades menos geradoras de caixa diminua os recursos disponíveis para a distribuição de dividendos”, diz Leonardo Rufino, sócio da gestora Mantaro Capital. A ingerência na Petrobras junta-se aos erros que o governo Lula tem cometido, com uma gastança que tem levado ao desequilíbrio fiscal e disseminado insegurança entre os investidores. No caso da Petrobras, ele deveria deixar a empresa seguir seu próprio rumo. Isso faria bem não só para a petrolífera, mas, acima de tudo, para o país.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893