Eleito com um programa de governo baseado no liberalismo econômico, Jair Bolsonaro prometeu privatizações e reformas estruturais que impulsionariam o desenvolvimento do país com o apoio da iniciativa privada. Ao longo de quatro anos, as realizações ficaram aquém da realidade, mas houve avanços — e, entre eles, dois se destacam. O marco legal do saneamento básico, aprovado em 2020, foi uma das microrreformas conduzidas pela equipe econômica que significou um avanço em um setor em que a ineficiência pública é notória, ao criar um ambiente favorável para investimentos privados com o objetivo de chegar à universalização do acesso à água potável e à coleta e tratamento de esgoto até 2033.
Em paralelo, em outro segmento marcado por uma expectativa elevada, o das privatizações, uma das poucas conquistas a serem celebradas foi, em âmbito estadual, a venda da complicada Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae), em 2021. A empresa teve seus principais serviços leiloados por 22,7 bilhões de reais, em certame que teve como vencedoras as empresas Aegea, Iguá e o grupo Águas do Brasil, que agora estão em fase de implementação da nova gestão da empresa. Se a transição for bem-sucedida, o estado do Rio terá, no futuro, tratamento adequado de água e esgoto em regiões hoje carentes de serviços básicos, além de uma diminuição da poluição nas praias e na Baía de Guanabara. A Cedae, por sua vez, continuará existindo, mas será responsável pela captação e pelo tratamento da água, e entregará o recurso natural para ser distribuído às empresas vencedoras do leilão.
O problema é que, no Brasil, mesmo quando tudo parece bem encaminhado, as surpresas negativas insistem em aparecer. Sob esse aspecto, essas duas conquistas econômicas do Brasil atual — o marco do saneamento e a privatização da Cedae — estão sob risco justamente pela insegurança jurídica que sempre afastou os investimentos no país. “O marco legal do saneamento e as concessões inauguraram uma nova era. No entanto, isso tudo pode ser comprometido por ações judiciais que desafiam a legislação e o entendimento dos Tribunais Superiores, não acatado pelas cortes locais”, diz o advogado Bruno Calfat, que representa as empresas do setor.
O marco do saneamento trouxe, como um de seus pontos de base, novas diretrizes para a cobrança de água no país. A nova regulação estabeleceu a criação de uma tarifa mínima para água e esgoto, em moldes semelhantes ao que acontece, por exemplo, no setor de energia. Com isso, a cobrança inicial não é determinada pela quantidade do recurso utilizada, mas por um valor fixo. Essa forma de tarifação para o saneamento serviu de referência para as empresas vencedoras das concessões estimarem o custo da operação e o capital a ser investido para se alcançar as metas determinadas para a universalização dos serviços.
A surpresa é que uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro atropelou as novas regras estabelecidas e resgatou um critério de tributação estipulado em 2010. O TJ declarou ilegal a cobrança dessa tarifa mínima por imóvel nos casos de condomínios residenciais ou comerciais, em especial os mais antigos, em que há um único hidrômetro. E determina que, nessas situações, a tarifa de água seja definida usando como base o consumo real aferido pelo equipamento, dividido pelas unidades, mesmo que fique abaixo de um piso de valor. Agora, as empresas do setor e juristas temem que esse entendimento seja repassado para outros estados. “O Rio de Janeiro será uma referência para as concessões nesse setor. A expectativa é que o Superior Tribunal de Justiça reverta essa decisão em nome da segurança jurídica para as concessões vindouras”, avalia o diretor jurídico da Cedae, Rafael Cid. “Não concordamos com a tese porque entendemos que se deve ter um arbitramento mínimo pela exploração do serviço, que é como funciona no mundo inteiro.”
Mesmo antes de sua privatização, a Cedae já sofria de um dos grandes malefícios do capitalismo brasileiro: o excesso de judicialização, que inibe a atração de investimentos no setor. A empresa estima que tenha perdido nas últimas duas décadas entre 800 milhões e 1 bilhão de reais em ações judiciais movidas por consumidores. Atualmente, existem cerca de 25 000 processos movidos por clientes e um passivo acumulado de 4 bilhões de reais. Comenta-se, no ambiente jurídico, que a empresa seria uma vítima da “indústria” de advogados que se especializaram em judicializar o tema da cobrança mínima. A expectativa é que o STJ (o caso está nas mãos do ministro Manoel Erhardt) e a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) pacifiquem a questão e permitam que os avanços não escorram pelo ralo. Até aqui, infelizmente, diversas manobras protelatórias de escritórios de advocacia têm sido bem-sucedidas.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799