O escândalo contábil que destroçou a reputação da rede Americanas é um caso único na história corporativa brasileira. A começar pelos valores envolvidos. Segundo novas estimativas, as fraudes poderão chegar a 25 bilhões de reais. Para efeito de comparação, o valor supera em 2,5 vezes o rombo atual da petroleira OGX, que quebrou após dar calote em credores. Outro ponto que chama a atenção no episódio diz respeito aos nomes ligados à varejista. Entre seus acionistas majoritários estão três lendas empresariais — Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, reconhecidos inclusive no cenário internacional. Um terceiro aspecto que coloca a Americanas em um patamar sem precedentes surgiu agora. Poucas vezes houve provas tão contundentes e explícitas das falcatruas cometidas dentro de uma corporação desse porte, com ações negociadas em bolsa e trajetória quase centenária.
Na terça-feira 13, uma fartura de e-mails, conversas por WhatsApp, planilhas e outros documentos foi apresentada pelo atual CEO, Leonardo Coelho Pereira, à CPI criada para investigar os desmandos na companhia. O material é estarrecedor. Segundo Pereira, a antiga diretoria, liderada pelo ex-presidente Miguel Gutierrez, escondeu operações de financiamento irregulares e criou mecanismos internos para ocultar do conselho de administração e do mercado financeiro informações verdadeiras sobre o desastre que era a gestão da companhia. Nos e-mails e mensagens por WhatsApp, os executivos combinavam as estratégias que seriam adotadas para falsear a realidade — atitude até certo ponto ingênua, pois seria de esperar que em algum momento as conversas vazassem.
Na CPI, Leonardo Pereira disse que os fatos apresentados por ele não permitem mais tratar o rombo como apenas uma inconsistência contábil. O caso vai muito além disso — seria crime propriamente dito. “Se a diretoria antiga da Americanas falsificou lucro, ela não conseguiria falsificar o caixa”, detalhou. “Então, é preciso de um empréstimo bancário para colocar dinheiro naquela operação e a fraude não ficar transparente para ninguém.” Como a Americanas tinha reputação inconteste junto a bancos e agências de classificação de risco, ficava fácil, afirmou Pereira, acobertar os desvios nos balanços. “Ninguém se preocupou em investigar a fundo”, disse a VEJA o empresário Luiz Cezar Fernandes, que foi sócio de Lemann, Telles e Sicupira no Banco Garantia.
O caso veio à tona após Sergio Rial, ex-CEO do Santander e que havia sido contratado para comandar a Americanas, denunciar as tais inconsistências contábeis. Rial ficou apenas nove dias no cargo, alegando que desistiu de liderar a empresa ao conhecer as maracutaias nos balanços. Por enquanto, todo o peso das fraudes recai sobre os ombros do antigo CEO, Miguel Gutierrez, e sua diretoria. O farto material apresentado à CPI não menciona o trio Lemann, Telles e Sicupira. “Os documentos não mostram envolvimento do conselho de administração e dos acionistas”, disse Pereira aos parlamentares. “Se tiver, e a investigação ainda está em andamento, vamos responsabilizá-los.”
Além da Americanas, o trio controla a AB InBev, a maior cervejaria do mundo, e os gigantes americanos de alimentação Burger King e Kraft Heinz. No mercado, eles são conhecidos por acompanhar de perto e com mão de ferro os negócios. “O Beto Sicupira era onipresente na empresa, não tenho dúvida de que o Rial foi uma escolha dele”, afirmou Fernandes. “Acho que eles sabiam que existia alguma coisa na Americanas, mas fizeram uma estratégia que deu errado.”
Ainda sem uma conclusão definitiva sobre todas as responsabilidades, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga a conduta dos acionistas, de Rial e de integrantes da antiga diretoria. Também estão na mira do órgão regulador as auditorias PwC e KPMG, que aprovaram as contas da empresa, e a B3, a bolsa de valores de São Paulo, por ter listado a Americanas no Novo Mercado, categoria que deveria incluir apenas empresas com elevados níveis de governança. “O auditor externo precisa ter independência para escrever o que encontrou, mas o que temos visto é que as grandes auditorias têm medo de perder o cliente”, diz a especialista em compliance Patricia Punder. Ao que parece, esse escândalo ainda está longe do fim.
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846