É algo raro, mas há ao menos um ponto em que Paulo Guedes, o ex-ministro da Economia do governo de Jair Bolsonaro, e o presidente Lula concordam: os analistas erraram feio a respeito da capacidade de o país crescer sob suas gestões. “Não ajudou em nada, só atrapalhou”, afirmou Guedes, em 2022, em uma de suas várias alfinetadas no Fundo Monetário Internacional. Explica-se: o FMI, no início da pandemia, em 2020, dizia que o produto interno bruto do Brasil iria afundar 9% naquele ano. Caiu 3,3%. “Eu quero alertar os pessimistas: este país vai crescer mais neste ano do que vocês falaram até agora”, bradou Lula em abril. Na última terça-feira, 3, o presidente pôde comemorar. Os números divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostraram que o PIB cresceu 1,4% no segundo trimestre na comparação com o primeiro. Ante os mesmos meses de 2023, a alta é de 3,3% — um, digamos, “pibão”, que há tempos não se via.
O resultado foi melhor do que qualquer banco ou consultoria esperava e já obrigou todos eles a revisar para cima as suas projeções para 2024. Será o quinto ano seguido em que o desempenho da economia é melhor do que as apostas e, principalmente, mais forte do que estava antes. Entre recessões profundas e momentos de crescimento pífio, o PIB dos anos de 2010 avançou a uma agonizante média de 0,3% ao ano. A renda, medida pelo PIB per capita, terminou 2020 menor do que em 2010, algo que, em mais de um século, só tinha acontecido nos anos de 1980, a outra “década perdida” que o Brasil viveu. De 2021 para cá, o crescimento médio ficou próximo de 3% ao ano.
As taxas mais altas e a sucessão de projeções subestimadas levam a uma questão natural: o Brasil voltou a crescer com firmeza? “Estudos mostram que, quando há erros sistemáticos, e em uma única direção, é indicação de que houve uma mudança estrutural na economia e que ainda não foi captada”, diz Fausto Vieira, pesquisador do Centro de Investigação em Economia e Finanças da Universidade de Brasília (UnB). “É como seguir estimando o consumo de combustível para um motor quando o país já tem um carro mais eficiente e você não sabe.”
Que o Brasil cresceu com mais vigor é um fato. As divergências começam nas explicações para isso. De um lado, há os economistas que acreditam que o país ganhou alguma produtividade extra nesse período e pode agora crescer um pouco mais. Para outros, este foi um avanço peculiar do momento, que misturou recuperação econômica com bombas de estímulos fiscais, mas que já está perto de se esgotar. Os resultados do PIB guardam alguns argumentos a favor dos primeiros. Os investimentos cresceram 2,8% e engataram o terceiro trimestre seguido de evolução. Eles captam as inversões em máquinas, infraestrutura e tecnologia, e vêm de uma década em que definharam. “Temos mais investimentos e mais gente trabalhando, o que permite aumentar a oferta e viabilizar um crescimento mais sustentado”, defende Claudio Considera, coordenador do Núcleo de Contas Nacionais da Fundação Getulio Vargas. Novas tecnologias, como as de conexão mais rápida, automação, uso de aplicativos e da inteligência artificial, também trouxeram mais produtividade. É algo ainda difícil de mensurar, mas o que se sabe é que o PIB do setor de tecnologia e comunicação é o que mais cresce hoje no país: ele já está 32% acima do nível pré-pandemia, enquanto a economia como um todo cresceu 10%.
Vieira, da UnB, destaca a agenda intensiva de reformas dos últimos anos, caso das mudanças nas leis trabalhistas, em 2017, na Previdência, em 2019, e de regulamentações setoriais como a Lei das Estatais (2016) ou o Marco Legal do Saneamento (2021). “São reformas estruturais que estimulam investimentos e mexem diretamente com a produtividade”, diz. Um estudo feito no ano passado pela UnB junto ao Ministério do Planejamento calculou que a expansão do PIB potencial do Brasil já teria subido da faixa de 1%, no período após a recessão de 2015, para 2% ou 2,5% atualmente. O PIB potencial é uma medida imaginária, mas importante, de tudo o que a economia é capaz de produzir e quanto pode crescer sem gerar inflação. No longo prazo, aumentar essa elasticidade, com mais infraestrutura, mais tecnologia e mais trabalhadores habilitados, é a única maneira de um país acelerar seu crescimento e poder melhorar a renda de sua população. Os cálculos variam, mas poucos especialistas discordam de que o potencial do Brasil ficou um pouco maior nesta primeira metade da década de 2020.
A dúvida é se esse ganho se sustenta. Para muitos, já há sinais de que está se esgotando. “A fase do crescimento fácil já foi”, diz José Ronaldo de Souza, economista-chefe da Leme Consultores e pesquisador especializado em produtividade. “Viemos de uma década perdida, que tinha deixado muita capacidade ociosa para ocupar e que agora está perto do limite.” A indústria, que chegou a operar com 30% das fábricas paradas em 2016, está hoje com essa folga perto dos 16%, o menor nível desde 2014. A taxa de desemprego saiu de 15% na pandemia para menos de 7% em julho, o nível mais baixo em uma década. Entre as mudanças estão os serviços com aplicativos, como os de transporte, que hoje empregam milhões de brasileiros. Tudo isso significa que as próximas contratações das empresas já devem ser mais difíceis e pode vir um gargalo no mercado de trabalho.
A inflação é o primeiro sintoma de uma economia que está testando os limites. Após um ano moderada, ela voltou a subir e a alimentar as cobranças de que o BC retome o aumento dos juros e freie o crescimento. “O quadro começou a mudar nos últimos meses”, diz Fabio Kanczuk, diretor de macroeconomia da ASA. Foi ele, quando era diretor do Banco Central em 2020, quem desenvolveu o modelo de PIB potencial usado até hoje pela autarquia para calcular o nível ideal da taxa básica de juros. “A moleza desse potencial maior está acabando, e os únicos resultados possíveis são a economia crescer menos ou a inflação não cair”, diz.
A retomada dos investimentos pode melhorar esse prognóstico, mas, com inflação e juros em alta, tende, de novo, a ter vida curta. A continuidade da agenda de reformas e uma gestão equilibrada para as desconjuntadas contas públicas, que aumentam a dívida, a desconfiança e forçam os juros a ficar mais altos, são outros ingredientes no receituário elementar para que o país transforme seus voos de galinha em um novo ciclo de crescimento sustentável. É claro que os resultados recentes são um alento. Em 2024, o Brasil deve finalmente superar o PIB per capita que chegou a ter em 2013. Mas isso é muito pouco para o país. É imprescindível criar as bases para que a economia continue a prosperar.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909