Emprego no Brasil tem paradoxo: muitos trabalhando, mas produtividade baixa
Economia pouco mudou na ineficiência com que usa seus recursos - físicos e humanos
Nos anos 1980, uma pequena lanchonete no número 691 da Avenida Paulista, em São Paulo, ficou famosa. Batizada de O Engenheiro que Virou Suco, a casa pertencia ao — sim — engenheiro Odil Garcez Filho, que abriu o negócio depois de ser demitido, em 1982, da fábrica onde trabalhava. O nome pegou e virou retrato da “década perdida”, quando se tornou comum a figura de diplomados como Odil alocada em atividades consideradas inferiores, ou mesmo sem trabalho. É uma realidade que mudou bastante depois. Os engenheiros, por exemplo, estiveram entre os profissionais mais disputados com o aquecimento da economia nos anos 2000. Mas, como muita coisa no Brasil, onde o processo histórico é cheio de desvios que deixam o país no mesmo lugar, a subutilização de profissionais continua insistentemente presente. Hoje não é raro encontrar alguém com boa formação na direção de um carro de aplicativo. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que o número de motoristas de passageiros autônomos chegou a 1,1 milhão no país em 2022, sendo que 21% deles tinham ensino superior.
Essa espécie de desperdício é um dos reflexos de uma economia que pouco mudou na ineficiência com que usa seus recursos (físicos e humanos), e ajuda a explicar por que a produtividade, uma das principais fraquezas brasileiras, pouco evoluiu em décadas. É também uma das razões por trás de um paradoxo: o fato de a produtividade não crescer mesmo tendo havido uma aceleração na educação. “A educação desenvolve conhecimentos que fazem com que os trabalhadores sejam mais produtivos”, diz Tássia Cruz, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) especializada em economia da educação. “Mas há vários fatores que fazem com que essa conexão seja falha, e isso é especialmente problemático em países desiguais como o Brasil.” A produtividade mede a capacidade das economias de produzir mais com os mesmos recursos, e é o mais potente motor para que um país cresça e amplie a renda de sua população. É por isso que ganhar eficiência é vital para o Brasil.
Os avanços em seu entorno foram expressivos. Na educação, o Brasil é outro. O analfabetismo, que atingia 20% da população em 1980, foi reduzido a 7%. Em 2023, a proporção de trabalhadores com ensino superior chegou a 23%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Há dez anos era de 14% e, em 1980, menos de 5%. Isso em um país que, hoje, tem um recorde de pessoas trabalhando — a população ocupada passou dos 100 milhões pela primeira vez, em 2023 — e que vive próximo do pleno emprego, com uma taxa de desocupação perto dos 7%, a menor em quase dez anos. Os dados de junho serão divulgados na quarta-feira 31, pelo IBGE.
Mas nada disso parece mover a produtividade. Ela é medida pela quantidade de riqueza que é gerada por trabalhador, e, na última década, não saiu do lugar: encerrou 2023 nos mesmos 41 reais produzidos por hora trabalhada de 2012, de acordo com dados do Observatório da Produtividade Regis Bonelli da FGV. E, não fossem pelas ampliações do ensino, o resultado seria ainda pior. “Mesmo com os problemas de qualidade, a educação avançou muito”, diz Fernando Veloso, coordenador do observatório. “Mas a eficiência da nossa economia é baixa, o ambiente de negócios é complicado e o resultado é que não usamos o nosso potencial da melhor maneira.”
Os economistas conseguem verificar as contribuições da educação para a economia por meio do chamado capital humano, um índice teórico que estima quanto as habilidades dos trabalhadores estão melhorando. E o fato é que ele cresceu. Desde 2012, o Índice de Capital Humano, um dos componentes da produtividade, subiu 23% no Brasil, de acordo com a FGV. A conta é feita com base em dados como os de anos médios de estudo e salários pagos, que já dão uma noção, mesmo que imprecisa, de quanto vale a “qualidade” do trabalhador. “A metodologia já capta os problemas da qualidade, ou seja, se a nossa educação fosse boa, o aumento seria ainda maior”, afirma Veloso. Foi esse avanço na qualidade de capital humano que ajudou o resultado final a ficar no zero a zero, já que, do outro lado, a Produtividade Total dos Fatores (PTF), uma medida mais completa, recuou 16% de 2012 para cá.
A PTF, além da capacidade de produção por trabalhador, embute a produtividade do capital, isto é, de máquinas, tecnologias e infraestruturas disponíveis no país. É um termômetro da eficiência com que a economia usa esses recursos, ou seja, quanto aproveita ou desperdiça a produção que eles podem oferecer — e, como mostram os números, o Brasil é um fracasso nesse quesito. Pessoas qualificadas, mas trabalhando em atividades que produzem menos riqueza, são um exemplo dessa ineficiência. “A sobre-educação no país é muito elevada e está aumentando”, diz Mauricio Reis, economista do Ipea. “São profissionais com grau superior em atividades que exigem ensino médio, ou com ensino médio em empregos que precisam apenas do fundamental.” Nas contas de Reis, 37% dos profissionais estão hoje nessa situação. Em 2012, eram 26%.
A qualidade baixa de escolas e faculdades é uma das razões para as diplomações não estarem se convertendo em promoções. A subutilização é também indicador de que a oferta de pessoas com ensino superior cresceu mais depressa do que um país em franca desindustrialização e movido a serviços informais tem capacidade de absorver. O pior diagnóstico, porém, não está nas pessoas, mas na estrutura da economia brasileira em si, construída sobre alicerces repletos de subsídios ineficientes e de desincentivos aos investimentos, caso dos juros historicamente altos e das conhecidas inseguranças jurídicas. Não à toa, a taxa de investimento brasileira, hoje na faixa de 16% do produto interno bruto, está entre as vinte mais baixas do mundo e, pelas projeções do Fundo Monetário Internacional, deve voltar a cair e ficar estagnada nos 15% até pelo menos 2029.
O resultado é um sistema produtivo deformado, em que a infraestrutura e a tecnologia andam devagar, empresas pouco eficientes perduram e novas concorrentes não prosperam. Os profissionais, mesmo qualificados, são tragados por um ambiente falho, e tudo isso depaupera a produtividade geral. “Nossos investimentos em capital foram feitos com endividamento público, aumento da carga tributária e um sistema tributário distorcivo”, diz José Ronaldo de Souza, economista-chefe da Leme Consultores e coautor do livro O Desafio da Produtividade: Como Tirar o Brasil da Armadilha da Renda Média. “Nunca tivemos uma política estruturada para a produtividade, então, depois de chegar à renda média nos anos de 1970, não conseguimos mais sair dela.” O pior: não se vê um plano para escapar da armadilha.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903