Em uma das previsões mais marcantes que faz em seu livro Sapiens, o escritor israelense Yuval Noah Harari imagina um mundo em que a inteligência artificial avança de tal forma que torna obsoleto o trabalho de boa parte da humanidade. O mais alarmante nesse futuro possível é quanto ele está próximo da realidade atual. Um estudo realizado pela consultoria americana Gartner mostra que, já em 2020, o uso de máquinas que reproduzem o raciocínio humano deve extinguir 1,8 milhão de empregos e algumas profissões se tornarão completamente ultrapassadas devido ao avanço da tecnologia, incluindo carreiras técnicas e com remuneração mais elevada em áreas de produção e administrativas. No Brasil, por exemplo, entre 2009 e 2019, não foi registrado um único ano sequer de crescimento do emprego formal com mais de dois salários mínimos, segmento típico das ocupações médias nos escritórios e fábricas.
Parece incontestável que, no Brasil, boa parte do atual contingente de 11,9 milhões de desempregados jamais retornará às suas antigas funções. A indústria e o comércio, em um ambiente de pouco crescimento, estão realizando rapidamente a transição para o ambiente digital como forma de substituir a mão de obra demitida, ganhar eficiência e deixar de pagar pesados encargos trabalhistas com novas contratações com a melhoria do cenário econômico. A situação é igualmente séria para os jovens que buscam o primeiro emprego, e que têm pouquíssimas chances de obtê-lo nas mesmas condições que as gerações anteriores. “Em breve, será muito difícil ver um jovem conquistar um padrão de vida melhor que o de seu pai”, prevê o economista José Pastore, professor da USP e presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio de São Paulo. “Nós assistiremos a uma inversão de boa parte da lógica social. Em vez de o filho cuidar do pai na velhice, o pai continuará contribuindo para a subsistência do filho por muito mais tempo.”
Com o avanço tecnológico e a automação de linhas de produção, a curva de crescimento de riqueza pessoal, que era ascendente, passou a ser descendente e reflete na qualidade dos empregos. Pode-se pensar que isso está acontecendo de forma mais acentuada no Brasil devido à crise econômica vivida pelo país nos últimos seis anos. Pastore, no entanto, ressalta que o fenômeno faz parte de uma transição global. Até mesmo nos Estados Unidos, um país que registra índices de desemprego ínfimos e onde se criam mais de 150 000 postos de trabalho mensalmente, a qualidade do emprego é baixa e piora ano a ano. Estudo realizado recentemente por pesquisadores da Universidade Cornell demonstrou como essa degradação se deu. Para isso, os economistas cruzaram o valor pago por hora aos trabalhadores com o volume de horas trabalhadas para definir a qualidade dos empregos. Em novembro de 2019, quando foram gerados 266 000 postos de trabalho nos Estados Unidos, a proporção era de oitenta funções bem remuneradas para cada 100 mal remuneradas. Em 1990, a diferença era muito menor — 94 funções bem remuneradas para 100 mal remuneradas. O estudo é claro ao apontar o avanço da tecnologia como o responsável pela piora da remuneração.
Outra grande mudança no mundo do trabalho é a migração da fabricação de produtos de consumo duráveis para países com grande contingente de mão de obra não qualificada e com regulamentação trabalhista baixa ou inexistente. Foi tal fenômeno que transformou nações como China, Índia, Paquistão, Bangladesh e Vietnã em “fábricas do mundo”. Estudiosos acreditam que a associação da evolução tecnológica com essa transferência da produção teve impacto severo sobre as camadas da população de países mais industrializados que se beneficiavam de salários mais elevados nas indústrias globais de produtos de consumo. Com menos mão de obra empregada nas fábricas, a grande maioria da massa trabalhadora tende a migrar para o setor de serviços, o que acaba por concentrar os recursos no topo da pirâmide social. “Como resultado, a maior parte do crescimento do mercado de trabalho se dá na forma de vagas que não apenas pagam menos por hora trabalhada, como também têm carga horária menor”, afirma Daniel Alpert, um dos autores do estudo da Universidade Cornell.
Definida por especialistas como um novo ciclo da Revolução Industrial, o momento que vivemos está muito distante dos tempos em que os chamados ludistas pregavam a destruição dos teares a vapor por substituírem a mão de obra humana e consequentemente deixarem uma massa de desempregados nas cidades industriais da Europa. Isso não significa, entretanto, que não sejam necessárias medidas que permitam uma transição menos traumática entre os modelos de produção. Os pesquisadores de Cornell, por exemplo, defendem ações públicas para mitigar esse impacto que vão de alterações no sistema educacional à modernização das relações trabalhistas. No Brasil, essa também é a linha defendida por quem está atento ao assunto. Em 2019, o governo federal montou o Grupo de Altos Estudos do Trabalho (Gaet), que visa ao desenvolvimento de políticas específicas para o setor. O objetivo dos economistas e sociólogos que participam do grupo é mudar a mentalidade corrente de que os trabalhadores são “executores de tarefas”, de modo que eles passem a ser “resolvedores de problemas”.
Trata-se de uma mudança brutal, que exigirá o aperfeiçoamento contínuo e grande capacidade de adaptação. “As pessoas vão precisar estudar ao longo de toda a sua vida, mas elas não poderão se dedicar a apenas uma área. Os especialistas vão perder mercado”, diz Ricardo Paes de Barros, economista do Insper e chefe do Gaet. “No passado, nossos pais diziam para nos dedicarmos a uma área para nos tornarmos uma sumidade num determinado assunto. Isso já não vale mais de nada.” Para Paes de Barros, o primeiro passo no sentido de adaptar os brasileiros a esse novo cenário já foi dado pelo governo do presidente Michel Temer com a reforma trabalhista e a reorganização do ensino médio, mas ele classifica essas medidas como tímidas. A previsão é que os resultados do Gaet sejam apresentados em fevereiro para o governo, que deve formular consultas públicas para decidir como vai abordar o desafio.
O uso da automação na produção e em processos burocráticos foi uma maneira de padronizar e aumentar a escala do trabalho em tarefas mecânicas, repetitivas e maçantes. Essa foi a porta de entrada para os robôs nas linhas de montagem de carros e até produtos mais prosaicos, como escovas de dentes. O impacto foi o fim das vagas nessas áreas. A evolução de tecnologias como sistemas de voz automatizados e a chegada de novos dispositivos de pagamentos eletrônicos já apontam para o fim de empregos como operador de telemarketing, caixas de bancos e supermercados, que começam a trilhar um processo de extinção irreversível. Por outro lado, carreiras como as de programador e especialista em computação tornam-se cada vez mais requisitadas, e muitas vezes em aspectos até então inimagináveis. O paulistano Stefan Martin, de 36 anos, tem uma profissão de nome complicado: designer de experiência do usuário. Seu trabalho, em uma empresa do setor financeiro, é avaliar — e melhorar — a interface que os clientes têm com o site e os dispositivos eletrônicos por meio dos quais contratam serviços e realizam operações. “É um ramo novo e que só agora começa a ser explorado em escala maior, mas que é extremamente promissor e será decisivo no futuro”, diz Martin.
Assim como as disciplinas ligadas à experiência de usuário, outras profissões despontam e implicam um desafio adicional aos gestores de recursos humanos. De acordo com uma pesquisa da consultoria americana Capgemini Research Institute, 64% das empresas enfrentam dificuldades de encontrar no mercado profissionais especializados na área de inteligência artificial. As competências requeridas têm mudado drasticamente, e hoje a familiaridade com modernas tecnologias é apenas parte da equação. Habilidades bem mais humanas, como originalidade, pensamento crítico, persuasão, inteligência emocional e liderança, são igualmente valorizadas. A mudança radical no mercado de trabalho é um caminho sem volta e exige um esforço triplo: governos, empresas e os próprios indivíduos precisam se aprimorar para garantir seu espaço no futuro.
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668