Em meio ao furacão que envolveu a varejista Americanas, alguns episódios continuam a ser revisitados como a cena decisiva de um filme policial, em busca de pistas e sinais que permitam a compreensão de como um escândalo de proporções tão gigantescas eclodiu sem que ninguém percebesse o que estava por vir. Um desses momentos é um pronunciamento em que Sergio Rial, o fugaz presidente da varejista, fez no dia 12 de janeiro em uma reunião virtual. No dia anterior, ele havia deixado o posto após identificar “inconsistências contábeis” no balanço da companhia, em um rombo então avaliado em 20 bilhões de reais. Em seu discurso para cerca de 1 000 investidores reunidos em uma live, Rial referiu-se ao uso excessivo do risco sacado, mecanismo pelo qual a empresa se valia dos recursos destinados aos pagamentos de fornecedores para se financiar. “Esse financiamento está diretamente relacionado ao incremento de vendas. Você incrementa as vendas, principalmente no digital, você precisa comprar mais produtos. Então, para isso, você precisa de capital de giro para fazê-lo”, declarou Rial. De fato, especialistas do setor e pessoas familiarizadas com os números da empresa apontaram a VEJA que a origem do problema da Americanas está exatamente na forma que a operação digital de empresa, a B2W, se valeu do risco sacado para a tomada excessiva de crédito junto a bancos e fazer o fluxo de caixa rodar.
Para entender como essa dinâmica foi engendrada, é importante conhecer o histórico da operação. A B2W nasceu em 2006, com a fusão entre as plataformas de comércio digital Americanas.com e Submarino, combinação que criava a maior empresa do segmento no Brasil. Apenas em 2021, o negócio foi integrado com a Lojas Americanas, responsável pelas operações da rede de lojas físicas — apesar de terem acionistas controladores em comum, com o trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. Ainda que separadas, as empresas física e on-line também dividiam a atenção do executivo Miguel Gutierrez, presidente da operação baseada nas lojas convencionais e membro do conselho de administração da companhia focada na internet.
Em sua existência como companhia independente, a B2W sangrou recursos e poucas vezes deu lucro. O seu último lucro líquido anual reportado aconteceu em 2010. Desde então, apenas queimou caixa para continuar operando e chegou a receber sucessivos aportes bilionários dos controladores, associados a vultosos empréstimos bancários, realizados em média a cada dois anos. “A empresa chegou muito próximo de quebrar umas quatro vezes e isso só não aconteceu oficialmente por conta dos aportes de capital dos acionistas”, comenta um especialista de mercado que preferiu não se identificar. “É normal uma empresa receber aportes para investir ou fazer aquisições. Mas ela consumia o dinheiro para operar. Já a operação das Lojas Americanas, da rede física, era um pouco mais redonda.” Apesar dos problemas financeiros, a B2W sempre contou com crédito farto na praça, devido principalmente à reputação de seus acionistas principais. “Ela era uma empresa de pai rico, que vinha em socorro sempre que precisasse, e com isso continuava tomando empréstimos”, explicou a VEJA uma fonte próxima da operação.
O banco americano Morgan Stanley chegou a publicar um relatório mostrando que, em 2016, ao queimar 1,6 bilhão de reais de caixa, a empresa perdia cerca de 3 000 reais por minuto. A mesma conta atualizada para o último balanço publicado, já com a B2W e a Americanas integradas, mostra uma multiplicação das perdas. Em doze meses até o fim do terceiro trimestre de 2022, a queima de caixa passou a ser de 15 000 reais por minuto. Ou seja, há muito tempo o negócio só trazia prejuízos independente do estonteante volume de vendas que realizasse, e isso piorou com o passar dos anos. O mais preocupante é que a conta ainda pode ser subestimada, uma vez que os balanços recentes da empresa devem ser refeitos e republicados. No último deles, a dívida líquida superava os 5 bilhões de reais, mas ela deve ser multiplicada por quatro assim que a contabilidade criativa seja desfeita, como revelou Rial em janeiro.
O problema cresceu, em especial, durante a pandemia, em 2020, quando os e-commerces aproveitaram o fechamento do comércio presencial para vender mais. “Na época, o lema era vender, não importando o custo. Era o momento deles e tinham de aproveitar com as lojas físicas fechadas”, comenta um analista. “O fato é que nenhuma empresa no Brasil aprendeu a como ter lucro com o e-commerce, uma vez que as vendas são feitas em diversas parcelas sem juros. Então, elas só recebem a receita ao longo do tempo, mas têm de pagar as contas à vista. Por isso, utilizam mecanismos de crédito. O problema com a B2W é que isso tomou uma proporção muito maior.”
Para manter o capital de giro, a B2W precisou utilizar mais da operação de risco sacado, também conhecida como forfait, pela qual ela toma crédito com bancos, que pagam direto ao fornecedor, em troca de juros. A varejista, então, paga meses depois ao banco o empréstimo. Com a aceleração das operações na pandemia, a empresa passou a não conseguir honrar os compromissos e a pedir ao fornecedor para emitir nova nota fiscal estendendo o prazo de pagamento, e com isso renovava o empréstimo com o banco. Contas que venceriam em 100 dias passaram a se acumular e a serem estendidas para serem quitadas depois de um ou dois anos. Para piorar, a rápida disparada dos juros básicos Selic, que subiu de 2% ao ano para 13,75% entre 2021 e 2022, tornou a dívida mais pesada e mais difícil de ser ocultada.
Tais operações de forfait são comuns no varejo e também são legítimas, desde que registradas corretamente nos balanços, como dívidas bancárias em vez de na conta fornecedor. Isso não aconteceu na B2W nem na Americanas depois da fusão das duas empresas em 2021. Se o volume real das dívidas fosse revelado, além de os executivos perderem os bônus por bom desempenho, a empresa demonstraria ao mercado o tamanho de seu problema, dificultando a tomada de crédito por juros baixos que fazia a operação continuar rodando. “Crédito é oxigênio para o varejo brasileiro. Mas obviamente precisa caber dentro do ciclo financeiro do negócio”, afirma Alberto Serrentino, da consultoria Varese Retail.
O holofote sobre a operação on-line acabou se ampliando no dia 3 de fevereiro, quando a empresa anunciou o afastamento de três diretores estatutários e três executivos, quase todos com passagens relevantes pela B2W, como a ex-presidente da empresa Anna Christina Saicali, e o seu sucessor no cargo, Márcio Cruz, além dos ex-diretores de relações institucionais e financeiro José Timotheo de Barros, Fabio Abrate e Marcelo Nunes. No comunicado, a varejista indicou que o afastamento não representava “qualquer antecipação de juízo”, mas buscava “contribuir plenamente com as apurações em curso”. Na quarta-feira 8, Saicali prestou depoimento à Polícia Federal sobre o caso.
A história ainda deve ter diversos desdobramentos. Na última semana, os acionistas principais da Americanas aumentaram para 10 bilhões de reais a oferta de um aporte para ajudar em sua recuperação judicial. O caminho para a negociação, agora, parece se pavimentar. Mas muitas perguntas sobre tudo o que aconteceu, e com impactos tão negativos para a economia e os negócios brasileiros, precisam ser respondidas.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832