Escalada da dívida pública exige medidas duras; o governo Lula vai bancar?
Analistas acreditam que presidente fará apenas um ajuste paliativo, que empurre o problema para longe, 2027, quando começará um novo governo
Se há um consenso entre os principais economistas do país, é o de que o prometido pacote fiscal dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, não atacará as raízes da disparada da dívida pública, que saltou de 72% para 79% do produto interno bruto (PIB) em apenas vinte meses. Tampouco mudará a rígida estrutura do Orçamento federal, cujas despesas obrigatórias já somam 90% do total. Até o fechamento desta edição, na quinta-feira 7, o governo ainda retocava o pacote. Para os analistas, ele servirá apenas para salvar o arcabouço fiscal, que sucumbirá já no primeiro ano de vida, se as projeções de mercado se confirmarem e o Brasil encerrar o ano com um déficit primário de 0,6% do PIB — pior que o piso de 0,25% da meta. O pessimismo vem sobretudo pela aparente má vontade do presidente Lula em bancar medidas mais duras — e urgentes — para arrumar a casa. No seu lugar, o governo deve enviar ao Congresso apenas um placebo, que nem de longe tirará o país do sufoco. “A montanha vai parir um rato”, afirma Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central e colunista de VEJA, referindo-se às medidas.
Para ser levado a sério, o governo deveria primeiro dimensionar corretamente o tamanho do problema. No melhor cenário, o pacote economizará 50 bilhões de reais. A primeira ressalva dos analistas é que não está claro se essa redução seria anual ou se representaria um acumulado de alguns anos. Além disso, não há garantia de que estabilize a dívida. “O pacote não resolve a questão”, diz Marcus Pestana, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI). “Ele só oferece um equilíbrio emergencial.” Os economistas calculam que seria necessário gerar um superávit primário anual de 1,4% a 1,7% do PIB apenas para estabilizar a dívida ao redor de 80% do PIB. Como o Brasil já está deficitário, isso significaria promover um corte equivalente a 3% do PIB, ou cerca de 400 bilhões de reais. A cifra pode ser ainda maior com a alta dos juros.
Na quarta-feira 6, o Comitê de Política Monetária do Banco Central elevou a taxa Selic para 11,25% ao ano. Tanto Roberto Campos Neto, atual presidente do BC, quanto Gabriel Galípolo, que o sucederá em 2025, votaram a favor da alta e cobraram uma política fiscal “crível e comprometida com a sustentabilidade da dívida”. A questão é que os juros atuam como mocinho e bandido nessa história. De um lado, ajudam a conter a inflação causada por gastos públicos maiores. De outro, encarecem o custo da dívida. O IFI estima que a despesa com os juros da dívida passou de 5,5% do PIB em 2021 para 7,5% no ano passado.
O segundo passo seria desarmar os mecanismos que aceleram o crescimento da dívida. O principal é a indexação. De acordo com a Constituição de 1988, o reajuste do salário mínimo deve reger o aumento de gastos com a previdência social, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o abono salarial. A Lei 7998/1990 determina que ele também corrija o seguro-desemprego. Somente em 2024, essas rubricas somarão 1,1 trilhão de reais, de um total de 2 trilhões em despesas. Outra questão: os governos petistas adotam uma política de dar ganhos reais ao salário mínimo. Embora seja louvável melhorar a renda dos mais vulneráveis, a prática fez as despesas indexadas escalarem de 6,5% do PIB para quase 10%, entre 2003, quando Lula assumiu seu primeiro mandato, e 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff. Após um leve declínio, a proporção acabaria voltando ao mesmo patamar com o retorno de Lula ao Palácio do Planalto, em 2023. Se nada mudar, os economistas calculam que, em 2025, essas despesas crescerão 420 milhões de reais para cada 1 real de reajuste do salário mínimo. Como a proposta orçamentária enviada ao Congresso prevê um aumento de 6,9% para o mínimo, que passaria para 1 509 reais, os gastos vinculados subiriam 41 bilhões de reais. “Uma desaceleração significativa das despesas só é possível se houver a desvinculação”, afirma Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management. A desvinculação, contudo, passa longe do receituário econômico do petista.
A situação ilustra a maior fragilidade do arcabouço fiscal. Como se sabe, ele determina que a soma de todas as despesas cresça 2,5% ao ano, já descontada a inflação. Seu objetivo é tornar o Orçamento mais flexível em relação ao teto de gastos criado no governo de Michel Temer e bombardeado pelos petistas. Mas, ao permitir que algumas obrigações, como as corrigidas pelo salário mínimo, aumentem mais que a regra, o arcabouço cria um paradoxo: a soma das partes tende a ser maior que o todo.
Para os analistas, um ajuste fiscal sério passaria a corrigir os gastos pela inflação. Assim, Lula poderia seguir com a política de ganhos reais para o salário mínimo dos trabalhadores que estão na ativa, enquanto os aposentados teriam sua renda protegida contra o aumento de preços. Por fim, a pressão desses encargos sobre o Orçamento começaria a cair. Segundo Paulo Bijos, que ocupou a Secretaria de Orçamento do Ministério do Planejamento até junho passado, ao corrigir aposentadorias, pensões e o BPC pela inflação, o governo economizaria até 1,1 trilhão de reais de 2025 a 2034. “Sabemos que a magnitude do ajuste fiscal impede que seja feito do dia para a noite”, diz Bijos. “Por isso, a correção pela inflação permitiria uma recuperação gradual do superávit.”
As despesas com saúde e educação são o segundo grande grupo de rubricas indexadas. A Constituição estabelece que o governo aplique, no mínimo, 15% da receita corrente líquida em saúde, e 18% dos impostos arrecadados em educação. De 2016 a 2023, quando vigorou o teto de gastos, essa regra foi substituída por reajuste pela inflação. Ao revogá-lo e instituir o arcabouço fiscal, Lula restaurou as regras constitucionais. O efeito foi um salto. Em 2024, a União está obrigada a investir 218 bilhões de reais em saúde e 100 bilhões em educação. Os valores correspondem a reajustes de 18% e 6%, respectivamente, sobre o ano passado — muito acima do limite de 2,5% previsto no arcabouço. “Foi um erro crasso cometido à luz do dia, apesar dos alertas”, diz Gabriel Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos. Para ser crível, o ajuste fiscal também deveria alterar o critério de correção desses gastos, passando a reajustá-los pela inflação. Paulo Bijos, outro defensor da ideia, estima que a medida economizaria 97 bilhões de reais até 2028.
Outras medidas teriam um efeito mais moral do que prático, como um basta aos supersalários do funcionalismo público. Estima-se que 25 000 servidores ganhem mais que o teto constitucional, representado pelo salário de 44 000 reais dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Segundo Barros, da ARX, enquadrar essa turma aliviaria os cofres públicos em até 7,5 bilhões de reais por ano. Se Lula quiser ir além, a revisão de isenções e benefícios fiscais é um campo enorme. Em 2025, a União deixará de arrecadar 544 bilhões de reais, uma alta de 21 bilhões sobre este ano. A avaliação geral é que muitas isenções não trazem resultados para o país. A luta para eliminar as benesses é dura e passível de derrotas, como as sofridas por Haddad quando tentou reverter a desoneração da folha de pagamento e encerrar o Perse, o programa de apoio ao setor de eventos. Mas a disposição de cortar seria apoiada pelo mercado. “O governo precisa escolher suas brigas, mas há bons argumentos contra os subsídios”, afirma Evandro Buccini, sócio da gestora Rio Bravo. “Este é o momento de fazer coisas grandes.”
Mesmo que Haddad convença Lula e a Esplanada dos Ministérios de que é hora de cortar na carne, precisará de igual empenho para angariar o apoio do Congresso. Medidas estruturais como a desvinculação dos pisos da saúde e da educação e a correção das aposentadorias pela inflação só seriam implementadas por meio de emendas constitucionais, cuja aprovação requer os votos de, pelos menos, 308 dos 513 deputados federais e de 49 dos 81 senadores. Com uma base gelatinosa no Parlamento, o Planalto teria de negociar muito para assegurar uma vitória.
O grande trunfo seria mostrar a deputados e senadores o óbvio: o avanço desenfreado das despesas obrigatórias ameaça as emendas parlamentares. Além disso, o presidente deveria sinalizar que assumiria o desgaste de bancar medidas impopulares, como limitar as despesas com saúde e educação. “Lula aceitaria o ônus do ajuste, e ainda daria o bônus ao Congresso de garantir que o pacote abriria espaço para as emendas”, diz Vítor Oliveira, sócio da consultoria política Pulso Público. “O caminho é simples, mas muito custoso para o presidente.”
Os analistas acreditam que Lula não pagará esse preço e bancará apenas um ajuste paliativo, que empurre o problema para longe, em 2027, quando começará um novo governo. A perspectiva desanima os observadores. “Não resolvemos o problema fiscal nos últimos dez anos e, sem vontade política, não o resolveremos nos próximos dez”, diz Márcio Holland, que chefiou a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda de 2011 a 2014 e viu de perto a deterioração das contas públicas no governo Dilma Rousseff. “Rumamos para o abismo.” Cabe a Lula impedir que o Brasil caia no precipício. Pagar essa conta lhe custará caro, mas ignorá-la certamente custará muito mais.
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918