Guerra bilionária entre J&F e Paper Excellence entra em fase decisiva
Briga pelo controle da Eldorado Celulose tem acusações pesadas e a participação de personagens graúdos dos círculos do poder
A maior disputa empresarial do país na atualidade não impressiona apenas pelos 15 bilhões de reais envolvidos no negócio. O imbróglio se arrasta há quase quatro anos nos tribunais, movimenta círculos graúdos do poder em Brasília e tem desdobramentos em delegacias de polícia devido a acusações pesadas de lado a lado que incluem até espionagem industrial. A briga é pelo controle da Eldorado Celulose, vendida em 2017 pela J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, à Paper Excellence, do indonésio Jackson Wijaya. Fechado o acordo, no entanto, as duas partes se desentenderam durante as etapas de pagamento e a J&F iniciou um movimento para anular o processo, ficando com a empresa. A Paper não aceita voltar atrás e chegou a ganhar a causa na instância de arbitragem empresarial que analisou o negócio. Mas a vitória durou pouco e a J&F, por força de uma liminar, suspendeu a decisão. A partir da segunda 21, começam na Justiça de São Paulo as audiências de instrução do processo para definir de uma vez por todas quem tem razão na contenda.
A J&F decidiu vender a Eldorado em setembro de 2017, num processo em etapas. Na última delas, quando a Paper assumiria o controle adquirindo a parte final das ações (os 50,59% que acabaram permanecendo com a J&F), começou o litígio. A J&F acusou a Paper de descumprir o prazo e as condições para a finalização do negócio, que envolviam a liberação das garantias dadas pela empresa brasileira e pela família Batista em razão das dívidas da Eldorado. A Paper, do outro lado, acusou a J&F de dificultar intencionalmente o cumprimento dessas condições por, supostamente, ter desistido da venda. Nesse ínterim, de fato, o cenário havia mudado: a J&F se recuperava do turbilhão causado pela delação dos Batista, assinada em 2017 com o Ministério Público, e a celulose se valorizou no mercado mundial.
Devido a toda essa briga, o caso Eldorado Celulose virou também o maior exemplo de como o mecanismo de arbitragem empresarial, criado justamente para evitar que disputas do tipo cheguem aos tribunais, pode trazer ainda mais problemas. Além de sustentar que foi vítima de hackeamento e espionagem que teriam prejudicado sua defesa, a J&F afirma que um dos juízes que analisou a disputa entre 2019 e 2021 na corte de arbitragem da Câmara de Comércio Internacional agiu sem a imparcialidade necessária. Em março de 2021, o grupo ajuizou a ação com o objetivo de invalidar a arbitragem mirando as baterias no juiz indicado pela companhia indonésia, Anderson Schreiber. Segundo a J&F, ele deixou de revelar que dividiu um imóvel e linhas telefônicas com o escritório de advocacia Stocche Forbes, que trabalhou justamente para a Paper. Foi esse argumento que mais pesou para que a Justiça paulista suspendesse temporariamente a transferência do controle da Eldorado para a Paper, no fim de julho passado.
À medida que o caso aumentava de complexidade, as empresas passaram a reforçar seus times de advogados, consultores e lobistas. Do lado da Paper, entre os contratados de peso estão o ex-presidente Michel Temer (MDB) — curiosamente, um adversário dos Batista desde a famigerada gravação clandestina no Jaburu — e o ex-delegado e ex-deputado Marcelo Itagiba. Do lado da J&F, há Frederick Wassef, ligado à família Bolsonaro, que atuou como advogado de um executivo do grupo, e o ex-diretor-geral da Polícia Federal Leandro Daiello — que, também curiosamente, comandou a corporação no auge da delação dos Batista. Essa disputa também virou caso de polícia e uma das queixas envolve a alegação de hackeamento de e-mails de advogados e executivos da J&F, que teria atingido mais de 100 endereços e 70 000 mensagens. As apurações tocadas pela J&F apontam para uma especialista em cibersegurança contratada pela Paper que teria subcontratado hackers para invadir o servidor da adversária. A polícia de São Paulo, contudo, arquivou um inquérito sobre o caso depois de não ter conseguido comprovar as suspeitas. Outro inquérito foi aberto em Diadema, e prossegue em sigilo.
A pedido da holding dos irmãos Batista, uma delegacia fluminense abriu ainda outro inquérito para investigar se o árbitro Schreiber cometeu o crime de falsidade ideológica por ter omitido que dividiu espaço com o escritório Stocche Forbes. Para a J&F, o árbitro deixou de revelar “fortes vínculos” com pessoas ligadas à outra parte e perdeu a confiança. Schreiber se defendeu afirmando que houve uma simples sublocação de salas comerciais entre o Stocche Forbes e o escritório dele, três anos antes da arbitragem. No último dia 10, o Ministério Público do Rio pediu o arquivamento da investigação criminal contra o árbitro, o que foi atendido pela juíza Daniella Prado no dia 11. Porém, em uma reviravolta, dias depois de arquivar o caso a juíza se declarou impedida de julgá-lo, e o inquérito contra Schreiber passou para um outro juiz, como revelou o Radar Econômico, de VEJA.
Situações como a de Schreiber geram intensos debates no meio jurídico: a mera omissão de informações é suficiente para anular uma sentença arbitral ou é preciso provar que o árbitro efetivamente foi parcial? Segundo a advogada e árbitra Maria Augusta Rost, o chamado “dever de revelação” é o que garante a credibilidade das arbitragens. “Tudo deve ser revelado. Se o árbitro deixa de lado o dever de revelar, isso vai minando a legitimidade da jurisdição arbitral”, diz, sem entrar no mérito do caso Eldorado.
A juíza responsável pela ação anulatória proposta pela J&F em São Paulo, Renata Maciel, inicialmente negou o pedido de liminar para paralisar a transferência de controle da Eldorado, indicando ser necessário aprofundar a análise dos prejuízos causados pela omissão do árbitro. A J&F recorreu. O desembargador José Araldo Telles reverteu, então, a decisão e mandou suspender a troca de comando da Eldorado até o julgamento do mérito. Telles morreu no último dia 6, deixando eventuais recursos do caso para um sucessor. Em dezembro, a disputa da Eldorado foi objeto de discussão em um evento sobre desafios da arbitragem realizado em Miami. A presidente da Comissão de Arbitragem da Câmara Internacional do Comércio, Débora Visconte, chegou a comentar publicamente na ocasião que “o Tribunal de Justiça entendeu que isso (a omissão) conflitaria o árbitro”, mas defendeu a ideia de que a liminar de suspensão do negócio seja revista.
Na visão da Paper, a alegação de impedimento de Schreiber deveria ter sido feita pela J&F no curso da arbitragem, e não depois de perdê-la. Além disso, os três árbitros deram ganho de causa à empresa indonésia, portanto, o voto de Schreiber não teria sido decisivo. Procurada pela reportagem de VEJA, a J&F se manifestou por meio de uma nota. “O caso da Paper Excellence é um escândalo comprovado por documentos, testemunhos e perícias. Está provado que todos os e-mails trocados pela J&F com seus advogados na arbitragem foram espionados durante a disputa. A J&F confia na Justiça para garantir a reputação do instituto da arbitragem e corrigir as exceções, como o caso da Paper Excellence”, diz o comunicado. É essa discussão que será retomada agora, mas nada indica que o conflito se resolva na primeira instância. As partes já falam em subir até o STJ, responsável por dar a última palavra em matéria de arbitragem no Brasil.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777