Lei Magnitsky coloca os bancos brasileiros em dilema bilionário
Dilema entre bloquear clientes por ordem dos EUA e obedecer às leis locais não é novidade para instituições internacionais — e pode ser referência para o Brasil

As sanções americanas a Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em julho, deixaram os bancos que atuam no Brasil no fio da navalha. Por um lado, não cumpri-las pode resultar em multas bilionárias nos Estados Unidos. Por outro, se as instituições financeiras as aplicarem, correm o risco de ser punidas pela Justiça brasileira — para reforçar esse ponto, uma decisão de Flávio Dino, também ministro do STF, referente a outro caso (mas feita sob medida para defender o colega de toga), determinou que leis e ordens executivas estrangeiras não são válidas no Brasil. Não demorou para que bancos como Itaú, Bradesco e BTG Pactual começassem a receber cartas do governo americano exigindo informações sobre o cumprimento das sanções contra Moraes, que se deram no âmbito da Global Magnitsky, originalmente criada para decretar a “morte financeira” de pessoas acusadas de corrupção ou graves violações de direitos humanos. No centro das preocupações está o Banco do Brasil, que detém a folha de pagamentos do STF e mantém operação nos Estados Unidos.

Não se trata de um dilema inédito. Bancos com atuação internacional tentam há décadas conciliar as sanções americanas com as leis de suas matrizes. Desde 1996, as empresas da União Europeia (UE), por exemplo, são proibidas pelo chamado Estatuto de Bloqueio de cumprir sanções americanas. Para atender às restrições dos Estados Unidos, os bancos precisam obter uma autorização da Comissão Europeia, mas o processo é burocrático. “Em teoria, normas locais prevalecem, mas, na prática, nem sempre está claro para as empresas globais como aplicar a lei”, disse a VEJA NEGÓCIOS uma executiva de compliance do setor financeiro europeu que pediu para não ser identificada por não ter autorização para falar em nome de sua empresa. “Contratamos escritórios de advocacia especializados para emitir pareceres sobre as possíveis implicações de aderir ou não às sanções. Além disso, se o braço europeu da empresa for obrigado a prestar serviços a indivíduos sancionados para não ferir o Estatuto de Bloqueio, é preciso separar totalmente essa transação das operações em dólar ou nos Estados Unidos.”
Um obstáculo para a aplicação do Estatuto — e que também complica a adesão à decisão de Dino no Brasil — é o poder dos Estados Unidos no sistema financeiro global. O dólar responde por mais da metade dos pagamentos comerciais e das remessas internacionais, por meio de um sistema conhecido como Swift. Bancos que não obedecem às sanções podem até ficar impossibilitados de operar em dólares. A UE não tem como impedir isso — nem o Brasil. “O custo de ser sancionado pelos Estados Unidos é tão alto que a maioria dos bancos cumpre as restrições, independentemente do que digam seus governos”, diz Anton Moiseienko, da Universidade Nacional da Austrália, especialista na Lei Magnitsky.

Em fevereiro deste ano, por exemplo, a Suprema Corte da Suíça determinou que bancos locais, como o UBS, descongelassem 15 milhões de dólares de três clientes russos sancionados pelos Estados Unidos por envolvimento em um esquema de corrupção denunciado pelo advogado Sergei Magnitsky — cuja morte na prisão, em 2009, inspirou a lei americana que leva seu nome. Uma investigação suíça não conseguiu comprovar ligação direta entre esses fundos e a corrupção denunciada por Magnitsky. “Meses depois, porém, não temos notícias de que o desbloqueio tenha ocorrido. O UBS alega sigilo, mas acho difícil que liberem os recursos, sob o risco de chamarem atenção dos Estados Unidos”, diz Mark Pieth, ex-chefe da unidade de Crime Econômico e Organizado do Ministério de Justiça e Polícia da Suíça.
Em geral, costuma ser mais fácil abrir a exceção em casa do que correr o risco maior de desobedecer aos desígnios dos Estados Unidos. “Os bancos costumam argumentar que não cumprir as sanções põe em risco seus modelos de negócios e afasta outros clientes”, diz o advogado Jeremy Paner, sócio da banca Hughes Hubbard & Reed, em Nova York, e ex-investigador-chefe do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros dos Estados Unidos (Ofac, na sigla em inglês). Esse é o órgão oficial que aplica as sanções e que mantém a lista de pessoas e entidades proibidas de fazer operações em dólar ou usar cartões de bandeiras americanas, como Visa e Mastercard. Além de Alexandre de Moraes, a relação inclui 17 000 nomes, desde terroristas até organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC), e é analisada com lupa pelos departamentos de compliance de bancos internacionais. O maior temor das instituições financeiras é serem elas mesmas incluídas na lista da Ofac, perdendo acesso a redes internacionais de pagamentos, clientes e parceiros. “Acho pouco provável que a Ofac sancione o Banco do Brasil como um todo — isso seria muito disruptivo. Mas uma subsidiária ou parte de suas operações pode se tornar alvo”, diz Paner.

A exclusão total do sistema é uma medida rara, no geral aplicada apenas a bancos de países sob embargo, como Rússia, Irã e Coreia do Norte. Mas bancos que cometem infrações podem ter de pagar multas pesadas. Em 2014, o francês BNP Paribas pagou 8,9 bilhões de dólares por facilitar transações em dólares com entidades do Sudão, do Irã e de Cuba. Até o Banco do Brasil já recebeu uma multa modesta, de 139 500 dólares, em 2015, por possibilitar importações de tapetes do Irã via filial em Nova York.
Neste ano, o governo do presidente americano Donald Trump criou um novo desafio para os bancos europeus ao impor sanções ao Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga crimes contra a humanidade e é reconhecido por 125 países (entre os quais o Brasil), mas não pelos Estados Unidos. Desde junho, seis juízes do TPI foram incluídos na lista da Ofac por autorizar investigações de soldados americanos e emitir um pedido de prisão do premiê israelense Benjamin Netanyahu. Também foi sancionada a italiana Francesca Albanese, relatora de Direitos Humanos da ONU.
Responsável por garantir que o TPI possa operar com independência, o governo holandês está negociando com bancos locais (ING, Rabobank e ABN AMRO) uma saída para o impasse. Algo semelhante pode ser tentado no Brasil para proteger o STF das sanções. “A resposta mais simples seria transferir as contas dos ministros da Corte para um banco com exposição internacional limitada, com o Estado oferecendo garantias caso surjam problemas”, diz Moiseienko. “Na Rússia, os sancionados levam uma vida normal, em um universo financeiro paralelo que não depende dos Estados Unidos.” Nem sempre, porém, é possível contornar as sanções. Carrie Lam, ex-chefe do Executivo de Hong Kong, por exemplo, sancionada em 2020, recebia seu salário em dinheiro vivo e o guardava na gaveta de casa.
É espantoso, para a democracia brasileira, se ver discutindo subterfúgios financeiros comuns em ditaduras. “Desde 2001, as sanções serviram com o objetivo legítimo de combater terrorismo, tráfico de drogas e violações de direitos humanos. Agora, causa consternação ver esse sistema sendo usado contra juízes sem relação com esses crimes”, diz Iryna Bogdanova, da Universidade de Luxemburgo, autora de um livro sobre sanções unilaterais. Equilibrar-se no fio da navalha das sanções se tornou ainda mais arriscado.
Publicado em VEJA, setembro de 2025, edição VEJA Negócios nº 18