Em uma de suas bem-humoradas tiradas, o satirista político e jornalista americano P.J. O’Rourke resumiu um dos grandes problemas de governos. “Existe uma ilusão de que o governo desperdiça dinheiro por ineficiência e preguiça. Na verdade, é preciso muito esforço e planejamento para gastar tanto dinheiro.” A piada serve perfeitamente para os políticos brasileiros. Basta observar os estratagemas montados nos últimos meses para o Congresso aprovar, em conjunto com o governo federal, novos dispêndios que escapassem dos limites impostos pela lei do teto de gastos, criada em 2016. O governo de Jair Bolsonaro despendeu considerável energia para burlar as restrições, uma vez que o teto só pode ser rompido com mudanças constitucionais. É o caso da recente PEC das bondades, que no mês passado criou um estado de emergência para permitir um furo de 41 bilhões de reais no teto, e da PEC dos Precatórios, que, em 2021, abriu um espaço de 106 bilhões de reais no Orçamento para que políticos pudessem usar mais verbas durante o ano eleitoral. Obviamente, o mercado financeiro perdeu a confiança na capacidade da regra fiscal proteger o caixa do apetite de políticos.
Pior do que isso é a situação que se desenha para 2023. As principais candidaturas para a Presidência têm deixado claro que não se interessam em manter a lei atual. O candidato Luiz Inácio Lula da Silva defende enfaticamente a revogação do teto de gastos. A proposta, aliás, está literalmente escrita no plano de governo da chapa Lula-Alckmin entregue ao TSE. “Nós vamos recolocar os pobres e os trabalhadores no Orçamento. Para isso, é preciso revogar o teto de gastos e rever o atual regime fiscal brasileiro, atualmente disfuncional e sem credibilidade”, diz o texto. Em evento com empresários na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Lula foi peremptório. “Quem tem responsabilidade na sua origem não precisa de lei para fazer teto de gastos”, disse.
Segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro, além de ter patrocinado a quebra na regra, não traz em seu novo plano de governo nenhuma menção expressa ao teto de gastos e ou a uma nova política de responsabilidade fiscal. Até mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, então incansável defensor da austeridade, passou a autorizar os furos no teto com a “licença para gastar”, frase que usou para defender a PEC dos Precatórios. Em um evento no começo de agosto, Guedes admitiu os furos no teto, mas justificou que foi pelos “motivos certos”. Seja como for, tudo isso cria incertezas. Levantamento do Bank of America com gestores de fundos mostrou que 60% deles estão preocupados com a política fiscal no pós-eleição. Em julho, eram 40%.
O teto de gastos foi criado como uma âncora fiscal no governo do ex-presidente Michel Temer para limitar o crescimento das despesas públicas até 2036. O objetivo era recuperar a credibilidade das contas públicas do Brasil junto aos investidores. “O teto de gastos significa que ninguém pode gastar mais daquilo que arrecada e foi uma das reformas que recolocaram o país nos trilhos”, defende Temer a VEJA. A comprovação de que funciona pode ser verificada nas taxas de títulos conhecidos como Tesouro IPCA+, referência do humor do mercado em relação à política fiscal. Antes da lei do teto, elas estavam em 7% de rendimento real. Caíram para 3,5% ao ano, e recentemente voltaram a ficar acima dos 6%, demonstrando a preocupação dos investidores.
O conceito básico do teto de gastos está em obrigar o governo a fazer escolhas. Se desejar gastar mais em algo, precisará buscar cortes em outro ponto menos necessário, algo que políticos odeiam fazer. “A ideia de um limite para as despesas públicas é pedagógica para o sistema político e para a sociedade”, afirma o economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia, da FGV. “A tese de que o teto não funciona é um equívoco. O próprio governo atual, de certa forma, desmoralizou o instrumento com a sucessão de PECs tratando do assunto.”
Se o fim do teto parece certo para a próxima gestão, as duas candidaturas concordam que alguma nova regra precisa tomar o seu lugar. Da mesma forma, é inevitável que o governo eleito, seja ele qual for, proponha uma nova PEC para custear as promessas de campanha. Muitas delas, como manter permanente o Auxílio Brasil em 600 reais mensais, dar aumentos de salário aos servidores federais e reajustar a tabela do imposto de renda, não caberão no teto. No Ministério da Economia, a equipe de Guedes trabalha numa proposta de que exista, além do limite do teto de gastos ajustado anualmente pela inflação, um valor a mais que possa ser utilizado a partir de uma meta de endividamento público em relação ao produto interno bruto (PIB). Na campanha de Lula, há conversas sobre a melhor alternativa a ser adotada. Um dos planos seria outra regra baseada no gasto, mas que, em vez de ser ajustado pelo crescimento do IPCA, seja pelo do PIB, e mire metas mais longas. Ou retirar os investimentos em capital do arcabouço. Independentemente das soluções que venham a ser propostas, o fim do teto não parece boa ideia.
Colaborou Victor Irajá
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803