“Nunca imaginei que seria a rainha da soja”
A professora Cecília Falavigna, 74 anos, relata como se tornou agricultora de referência no Paraná ao assumir os negócios após ficar viúva
Minha vida mudou depois de um drama pessoal. Após lutar por dois anos contra um câncer no estômago, meu marido, João, perdeu a batalha. Ele morreu em 23 de março de 1997. E foi a partir desse dia que tive de me reinventar. Professora e dona de casa, mãe de três filhos, vi-me perdida — era o João que administrava as propriedades rurais. Recebi diversos conselhos. Uns diziam para arrendar as terras; outros, para vendê-las. Até que resolvi arregaçar as mangas e assumir as duas fazendas, que ficam no município de Floraí, no Paraná. Para isso, tinha de aprender e estudar, porque eu não entendia de sementes, de solos, nem sabia o que era um alqueire de terra. Meu primeiro passo foi conversar com os empregados e pedir o apoio deles. No princípio, ficaram receosos. Mal falavam comigo. Afinal, nunca tinham tido de lidar com uma mulher. Com o tempo, porém, consegui a confiança, e eles estão comigo até hoje. O segundo passo foi procurar a cooperativa da região, a Cocamar. Aproveitava tudo o que a entidade me proporcionava, de cursos a palestras, mesmo não sabendo perguntar — porque, se você não tem conhecimento do assunto, não sabe nem qual é sua dúvida.
No início dessa nova fase de vida, tive duas grandes dificuldades. A primeira foi enfrentar o preconceito por ser mulher, e ainda viúva, num ambiente dominado por homens. Mas, à medida que me impunha, conquistava o respeito. A segunda foi em relação aos meus três filhos. Ana Cláudia, a mais velha, era recém-formada em arquitetura, mas ainda não estava casada; a do meio, Mara Sandra, é portadora de síndrome de Down, e eu não podia deixá-la com qualquer pessoa; o caçula, Paulo César, era adolescente, e eu queria muito proporcionar a ele uma faculdade. Perdi a conta de quantas vezes chorei de saudade deles, mas eu tinha de buscar o pão de cada dia. Passei momentos de solidão, sem ter com quem dividir dúvidas e angústias.
O primeiro desafio aconteceu logo na minha safra de estreia. Era época de plantar milho, mas o maquinário estava sucateado, não tinha como semear. Procurei a concessionária e comprei meu primeiro trator. Fiquei muito feliz. Nunca atrasei uma prestação. Passava madrugadas fazendo cálculos de quanto a soja me renderia para pagar as dívidas. O mercado oscila demais, a cotação do grão varia de um dia para o outro. É sempre um dilema: vender hoje ou esperar subir? Na agricultura, é difícil fazer previsões, a atividade depende do clima. Você planta e fica pensando: será que Deus vai mandar chuva? São quatro longos meses olhando para o céu. Na época do meu marido, nas fazendas havia soja, milho e gado, porém a receita com os animais caiu e resolvi trocá-los pelo cultivo da laranja, que tinha rendimento superior. Mas a minha menina dos olhos é a soja. Em três safras, 2015, 2016 e 2018, fui premiada no Paraná por conseguir a maior produtividade da região. Por mais que eu sempre buscasse o melhor manejo, nunca imaginei que seria a “rainha da soja”. Foi o reconhecimento por toda a minha luta. Encontrei barreiras, porém em nenhum momento pensei em desistir. Nem quando levei o maior tombo. Era uma quarta-feira, a soja estava amarelinha, e iríamos iniciar a colheita no dia seguinte, até que o telefone tocou e veio a notícia arrasadora: uma chuva de granizo acabara com toda a plantação. Passei mal, chorei, mas um dia depois ergui a cabeça e estava lá colhendo o pouco que havia sobrado.
Nesses 23 anos à frente das fazendas, eu me sinto realizada e começo a dividir as responsabilidades com meu filho, que conseguiu se formar em direito e hoje trabalha comigo. Tenho certeza de que fiz o meu melhor ao expandir o que o João deixou. Meu desejo é que minha soja continue alimentando as pessoas pelos quatro cantos deste mundo.
Depoimento dado a Alessandra Kianek
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678