As mensagens intempestivas e por vezes risíveis de Donald Trump pelo Twitter tornaram-se parte irrefutável da realidade. Passam por cima de protocolos da Casa Branca com o mesmo desprendimento com que se alimentam de informações quase sempre inverídicas. Mas é um problema ser o alvo de seus tuítes — em especial, depois do envio de declarações de amor e de fidelidade a Washington. O presidente Jair Bolsonaro viveu essa experiência na segunda-feira 2. Ele foi surpreendido com a ameaça de Trump de retomar as sobretaxas às importações de aço do Brasil como punição à suposta desvalorização do real, uma manobra prejudicial aos principais concorrentes agrícolas do Meio-Oeste americano.
O martelo não está batido, como ressaltou Bolsonaro na quarta-feira 4. Mas o tuíte levantou poeira suficiente para a preparação de uma batalha comercial, pelo menos no setor privado, e para constranger um governo que alinhou sua política externa à de Washington. Claramente focado nos votos nas eleições do ano que vem, Trump não se melindrou ao passar como um trator sobre seu aliado — algo já visto no episódio da Ucrânia, que lhe rendeu um processo de impeachment na Câmara dos Deputados. “É um ato ilegal e discriminatório, do ponto de vista da Organização Mundial do Comércio (OMC), e baseado em premissas equivocadas”, resumiu Rubens Barbosa, ex-embaixador brasileiro em Washington. “A medida está inspirada nas eleições de 2020 e na guerra comercial contra a China. O Brasil entrou de gaiato.”
A ameaça de Trump corresponde ao que é conhecido na área de comércio exterior como retaliação cruzada, um expediente de considerável truculência. “Trata-se da punição de um setor econômico, nesse caso o siderúrgico brasileiro, por um suposto prejuízo sofrido por outro, o dos agricultores americanos”, explica José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). Mas há mais artimanhas contidas no disparo de Trump na rede social, que inclui ainda a Argentina (aqui sobrou também para o vizinho). “Brasil e Argentina estão promovendo uma desvalorização maciça de suas moedas, o que é ruim para os nossos agricultores. Portanto, tendo efeito imediato, vou restaurar as tarifas sobre o aço e o alumínio que são importados pelos Estados Unidos desses países”, escreveu o americano.
A premissa da desvalorização cambial é vista como um argumento nonsense por especialistas da área. O Brasil adota a política de câmbio flutuante desde 1999, e a recente depreciação do real tem origem em uma série de fatores. “Foi determinante, sobretudo, a guerra comercial dos Estados Unidos com a China”, avalia Emerson Marçal, da Fundação Getulio Vargas (FGV). E os números mostram que a posição brasileira está longe de ser vantajosa diante da americana. Apesar dos aumentos nas vendas de aviões, petróleo, celulose e gasolina aos Estados Unidos, o déficit do Brasil no comércio bilateral elevou-se 900% entre 2018 e 2019. A queda de 16,3% nos embarques de aço contribuiu para o resultado e é outra evidência para desmontar o raciocínio do presidente americano.
Independentemente da solidez lógica de Trump, a ameaça caiu como um lingote incandescente sobre a siderurgia nacional. Desde junho de 2018, para contornar a aplicação de uma sobretaxa de 25% pelos americanos, acertou-se uma cota de 3,5 milhões de toneladas para o aço semiacabado brasileiro e de 496 285 toneladas para o tipo acabado — mais caro e que dispensa o processamento no país de destino. O volume permitido para o aço finalizado é aproximadamente a metade do que o Brasil mandou para os EUA no ano passado. Resultado: queda de 438 milhões de dólares nas vendas de aço brasileiro aos Estados Unidos. Em novembro, representantes do setor foram a Washington para tentar derrubar as barreiras para o aço semiacabado e aumentar o volume da cota para o acabado. Saíram otimistas da reunião, mas a alegria durou pouco. “O tuíte de Trump criou uma enorme insegurança nas relações comerciais”, lamenta Marco Polo de Mello Lopes, presidente executivo do Instituto Aço Brasil.
Se vingar, a proposta de Trump deverá agradar aos agricultores americanos, mas poderá provocar impacto em outras áreas: de carvão e de bens de capital. Carvoeiros colombianos e australianos já se preparam para cobrir a demanda brasileira pela matéria-prima, hoje 100% atendida pelos Estados Unidos e que implica contratos de 1 bilhão de dólares por ano. Fabricantes americanos de máquinas e equipamentos para a indústria de siderurgia também já se preocupam com uma possível redução da demanda dos clientes locais — um negócio de 4,3 bilhões de dólares ao ano. Na ponta do lápis, para restringir embarques de aço que somaram 2,3 bilhões de dólares de janeiro a outubro deste ano, Trump põe em risco outros 5,3 bilhões de vendas feitas ao Brasil.
Não se sabe de onde o líder americano tirou a ideia estapafúrdia de retaliar a política exterior brasileira dessa forma. De maneira geral, ele pauta seus anúncios bombásticos com vistas à mobilização de seu eleitorado e à premiação de empresários ou setores econômicos considerados aliados ou de relevância em sua estratégia política. “Ele reage de modo raivoso, mas, depois, muda de curso se percebe prejuízos eleitorais”, explica Peter Hakim, do Diálogo Interamericano, de Washington.
O governo brasileiro aposta justamente nesse padrão de comportamento. “Vejo com exagero o que está acontecendo. Por enquanto, não foi sobretaxado nada. Só tem a promessa dele”, declarou o presidente Bolsonaro, que há apenas três meses disparou um “I love you” para o ídolo na sede da ONU, em Nova York. Brasília ainda acredita em um acordo comercial vantajoso com os Estados Unidos e nos benefícios de ser aliada de Trump, que, na visão do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é o “salvador da civilização ocidental”. Diante de promessas não cumpridas — como apoiar a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) —, já era tempo de o governo brasileiro ter aprendido que Trump não é amigo de ninguém. Só da onça.
Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664