O presidente Jair Bolsonaro é, em sua essência, um político. As suas escolhas e decisões costumam embutir sempre um cálculo eleitoral, a possibilidade de trazer ou perder votos. No programa de governo que garantiu a sua eleição em 2018, havia acenos para os conservadores, para os religiosos, para os militares e para os defensores do liberalismo econômico. Esses últimos, porém, têm sido deixados de lado cada vez que o presidente trai as promessas de não intervenção na economia. O ano mal tinha começado, ele deu um novo susto nos mercados ao decidir pela demissão do presidente do Banco do Brasil, André Brandão, após apenas quatro meses no cargo. O motivo seria que o executivo anunciou uma reestruturação da instituição sem que fosse aprovada antes pela Presidência, na mesma semana em que a Ford decidiu deixar de produzir automóveis no Brasil.
Na quarta-feira 13, dia em que a notícia de demissão circulou, as ações do BB caíram 5%, em mais uma amostra de que os mercados costumam fazer uma leitura rápida de cada movimento antiliberal do presidente. O caso também serviu como prova de que, mesmo quando fazem parte de um governo que se autointitula privatista, as estatais estão sujeitas a intervenções que prejudicarão os seus resultados. Não foi a primeira vez que Bolsonaro deixou os investidores de cabelos em pé. Em abril de 2019, preocupado com a insatisfação dos caminhoneiros com o aumento do diesel, determinou que a Petrobras não reajustasse os preços nas refinarias. Em setembro do ano passado, o susto aconteceu quando pressionou varejistas a apertar as suas margens de lucro e não fazer aumentos de preços de alimentos, em nome do patriotismo.
O episódio envolvendo Brandão aumentou as aflições de quem percebe que o presidente não refreia os seus impulsos intervencionistas ao menor sinal de efeito político. Quando foi convidado para chefiar o BB, ele traçou como meta tornar a instituição mais competitiva por meio da redução das estruturas das agências e expansão da digitalização dos serviços, estratégia adotada pelos concorrentes privados. Segundo o Banco Central, no ano passado 1 394 agências bancárias fecharam as portas no Brasil. “Bolsonaro não absorveu as transformações da economia que tornaram obsoletos pontos de vista do passado”, analisa Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda egresso dos quadros do BB. “Ele ainda tem na cabeça o banco público dos anos 1980, que era financiado pelo BC e tinha linhas de crédito ilimitadas.”
O plano anunciado por Brandão envolve fechar 361 unidades e iniciar um programa de demissão voluntária de 5 000 funcionários. Com isso, pretende economizar 2,7 bilhões de reais até 2025. Aos olhos dos investidores, e daqueles que defendem uma administração pública mais eficiente, faz todo o sentido. Em quatro meses de gestão, as ações do BB chegaram a subir 30%, recuperando parte da desvalorização registrada durante a pandemia. O resultado não reduziu as resistências de Bolsonaro. O presidente nunca demonstrou simpatia por Brandão, que só foi nomeado graças ao apoio do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente do BC, Roberto Campos Neto. Desde o fim do ano passado, Bolsonaro passou a receber queixas de parlamentares sobre a atuação de Brandão, que não atendia a indicações para cargos na instituição, algo comum em governos anteriores, nem se empenhava para participar de agendas com políticos. Em tom de reclamação, diziam que o executivo era a antítese do presidente da Caixa, Pedro Guimarães, mais afeito ao universo político.
Circular nesse ambiente é novidade para Brandão, que atuou mais de vinte anos em instituições privadas. A última delas foi o banco inglês HSBC, onde ficou conhecido pelo perfil técnico e pelas reuniões objetivas. Alguns superintendentes do HSBC costumavam ir a Brasília, mas ele preferia não incluir esses compromissos em sua agenda. Ao chegar ao BB, o executivo se esforçou para se adaptar ao ambiente mais político, mas a sensação na estatal é de que ele foi jogado na frigideira. O Ministério da Economia foi avisado da movimentação contra Brandão, mas isso acabou não chegando ao presidente, que, por sua vez, deu ouvidos a uma onda de reclamações de prefeitos, temerosos de que a instituição ficasse sem representação em alguns municípios, um símbolo de prestígio. Ao tomar conhecimento das queixas, Bolsonaro disse a auxiliares que o plano de Brandão sabotaria o seu governo e avisou que iria “cortar a cabeça” do chefe do BB.
Depois dessa verdadeira tempestade — que causaria um leve ruído se fosse numa instituição privada —, a demissão só não foi assinada porque Campos Neto e Guedes entraram em ação. O ministro explicou ao presidente que nenhuma cidade ficaria sem unidades de atendimento e que haveria apenas um enxugamento das estruturas. Exonerá-lo também abriria uma nova frente de desgaste em meio à crise econômica e sanitária. Essas ponderações surtiram efeito, e Brandão continuará no cargo, pelo menos por enquanto. Além disso, ele foi orientado a estreitar laços com os políticos. Dentro do banco, a estratégia agora é que Brandão apresente as decisões mais delicadas em audiências com o presidente.
Isso pode evitar que se repita com ele o que aconteceu com o seu antecessor, que pediu demissão. Rubem Novaes, que presidiu o banco até julho do ano passado, costuma classificar uma empresa pública de capital aberto como uma anomalia jurídica. “É um mostrengo que não pode dar certo. Em algum momento, os interesses dos dois senhores entram em choque e paralisam tudo. Muito em razão disso, sou a favor da privatização do BB”, afirma ele.
Analistas de mercado estimam que, apenas pelo fato de estarem ligadas a uma estatal sujeita a alguma intervenção política, as ações do BB são descontadas entre 15% e 30% em relação a quanto valeriam se fossem de uma instituição privada. “Cabe aos acionistas se posicionar e exigir que a instituição cumpra suas funções”, defende a economista Elena Landau, que foi diretora de privatizações do BNDES. “A blindagem mais eficaz contra uso de publicidade a favor do governo, de veto à oferta de cargos para o Centrão, passa pela privatização do banco.” O fator complicador é que, de olho na reeleição, o presidente abandona a cartilha liberal com frequência quando avalia que corre o risco de perder votos. Isso aconteceu também quanto à reforma administrativa. O governo elaborou uma proposta sobre o tema, apresentada ao Planalto em novembro de 2019, mas o presidente não se mexeu para tirá-la do papel. Meses antes, numa conversa com Guedes, tratando do plano de cortar salários durante a pandemia, Bolsonaro explicou com números sua letargia quanto a mexer nos vencimentos dos servidores. Ele afirmou que cada funcionário público tem em média quatro familiares e, se a reforma administrativa atingir o humor de mais de 10 milhões de servidores, “serão cerca de 40 milhões de votos a menos nas eleições de 2022”. Bolsonaro é, de fato, essencialmente um político.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722