Batizado de Drex e apresentado pelo Banco Central em agosto do ano passado, o real digital entra agora em sua segunda etapa de testes, na qual os bancos e demais participantes do projeto vão propor aplicações práticas para a novidade. “O Drex representa uma transformação completa da infraestrutura financeira”, diz Thamilla Talarico, sócia da EY Brasil e responsável pela área de ativos digitais da consultoria. A digitalização da moeda não é uma jabuticaba. Segundo o instituto americano Atlantic Council, 134 países e regiões, representando 98% do PIB global, estão se esforçando para criar suas moedas digitais e usufruir o crescimento econômico que elas podem destravar.
Para entender esse potencial, é preciso conhecer a árvore genealógica do real digital. Seus avós são as criptomoedas, como o pioneiro Bitcoin. Delas, o Drex herdou dois pilares. O primeiro é o blockchain, tecnologia de registro descentralizado de transações, que permite que os usuários de uma plataforma arquivem não apenas as suas próprias operações, mas a de todos os demais. O segundo é a tokenização, processo que gera uma representação digital de qualquer coisa do mundo real — de uma obra de arte a cabeças de gado. Os pais do Drex são as stablecoins, criadas para atenuar as fortes oscilações de preços das criptos convencionais. Para tanto, atrelam seu valor a outros ativos, como o dólar e o ouro. Com as stablecoins, o real digital aprendeu que é possível se ancorar em algum ativo para manter a estabilidade. Ao contrário de seus antecessores, o Drex será lastreado nele mesmo, já que é a representação virtual do real, a moeda emitida e controlada pelo Banco Central do Brasil. Isso também a diferencia de seus “avós”, criptomoedas que podem ser criadas por qualquer pessoa.
Um exemplo prático mostra como funciona a nova moeda. Quando o salário de alguém for depositado no banco, será convertido em Drex, mas, no extrato, constará apenas que a pessoa tem reais na conta. Não haverá, portanto, um salário em reais físico e o equivalente em reais digitais. É verdade que a maior parte do dinheiro já é virtual. Cada vez menos, usamos cédulas. Os reais digitalizados parecem gêmeos siameses do Drex, mas têm fortes limitações. Se pudessem falar, não saberiam responder por que saíram da conta de alguém e caíram na de outra pessoa. Já a nova moeda saberá, porque carregará os chamados contratos inteligentes.
O exemplo preferido de quem participa do projeto do BC é o da venda de um carro. O Pix realizado nesse negócio significa apenas que uma quantia de dinheiro trocou de mãos. Nada, a não ser a palavra dos envolvidos, garante que a propriedade seja transferida para o comprador. É preciso vencer uma maratona burocrática para que o novo dono consiga, enfim, tomar posse do automóvel. Com os novos contratos inteligentes, a própria transferência do dinheiro será “carimbada” com as informações sobre a transação, incluindo as condições para que ela seja concluída. Assim, o contrato pode ser interrompido automaticamente se uma das partes não cumprir com o combinado.
Esse é apenas um exemplo das fronteiras abertas pelo real digital. O Banco Central e os dezesseis consórcios que participam do projeto mal começaram a arranhar as possibilidades. O que se sabe, contudo, é que ele tende a se desenvolver rapidamente na estruturação de novos produtos financeiros. Em vez de comprar uma ação, será possível investir apenas numa pequena parte dela. “Poderemos adquirir fatias muito menores de bens e ativos, e isso vai democratizar os investimentos”, afirma Larissa Moreira, gerente do Itaú Digital Assets. Já transações que envolvem troca de propriedade devem demorar mais um pouco. Embora a tecnologia permita a transferência instantânea de titularidade de um bem, ainda é necessário resolver questões legais e acomodar interesses, como os dos cartórios. “Quem garantirá a propriedade de um imóvel que foi tokenizado para ser pago com Drex: o escrivão ou o dono do token?”, indaga Renata Petrovic, líder de inovação do Bradesco. Espera-se que o Drex esteja disponível comercialmente até 2026. E então, quando esse problema for resolvido, as pilhas de papel e carimbos deixarão de bloquear a dinâmica da economia.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901