Em maio de 2019, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, assumiu os holofotes e abriu as portas para a participação do setor privado na economia brasileira. Num workshop para integrantes do mercado financeiro, ele lançou a Agenda BC#, que prometia quatro objetivos: democratizar, digitalizar, desburocratizar e desmonetizar. Em suma, pode-se definir que essas metas visam a transformação no sistema financeiro brasileiro. Pouco mais de um ano depois do anúncio, é possível notar uma movimentação da autoridade monetária nesse sentido.
O Banco Central se prepara para começar a rodar o open banking e o PIX, sistemas que prometem transformar a forma como o brasileiro lida com o dinheiro. Mas talvez nem demore tanto para isso. Uma pesquisa exclusiva da consultoria global Ernst & Young mostra que a pandemia do novo coronavírus tem forçado uma mudança de comportamento dos consumidores. Dentre as 1.112 pessoas ouvidas, 46% admitem que vão usar menos dinheiro em espécie num futuro próximo. Fora isso, 59% pretendem realizar mais transações financeiras on-line. Um sinal claro de mudança na relação entre bancos e consumidores.
O arcabouço é complexo. Com a Lei Geral de Proteção aos Dados, que entrará em vigor em maio de 2021, os bancos precisarão do consenso dos clientes para ter acesso a suas informações e fazer com que o open banking se torne, de fato, propulsor de uma dirupção no mercado financeiro. Chamado de sistema financeiro aberto, essa plataforma dá os primeiros passos no Brasil. Acostumado ao ‘aprisionamento’ nos bancos tradicionais e à terceirização do controle de suas informações, o consumidor agora poderá se beneficiar de uma maior abertura do mercado. Isso porque o open banking sistema vai facilitar o compartilhamento de registros financeiros de clientes entre as instituições, que, por sua vez, poderão movimentar o setor para oferecer melhores preços e serviços. “A ideia do open banking é trazer um dinamismo entre as transações financeiras. É uma mudança estrutural muito profunda”, diz Ingrid Barth, diretora-executiva da ABFintechs, a Associação Brasileira de Fintechs.
Na prática, esse novo sistema vai permitir o compartilhamento de informações entre as instituições financeiras por meio da integração e abertura dos sistemas utilizados por elas. Tal integração será feita a partir de interfaces de programação de aplicação (APIs, na sigla em inglês). No mercado financeiro, uma API permite, por exemplo, que as informações da sua conta bancária apareçam no aplicativo do seu banco. Com o open banking, será definido um padrão de API, o que vai permitir com que empresas do setor acessem os bancos de dados umas das outras de forma muito mais prática. A implementação do sistema se dará em quatro etapas, sendo a primeira delas em novembro deste ano. “Agora, o consumidor vai conseguir migrar todos seus dados e mostrar que seu comportamento em relação ao risco é bom, de que ele é um bom pagador etc. Isso vai fazer com que ele consiga acesso a empréstimos com taxa de juros a níveis mais baixos”, disse David Vélez, CEO do Nubank.
Segundo um relatório divulgado recentemente pelo Banco Central, as cinco maiores instituições financeiras do país – Banco do Brasil, Itaú Unibanco, Bradesco, Caixa Econômica Federal e Santander – detêm 80,7% das operações de crédito no país no segmento bancário, 79,2% dos ativos totais e 82,3% dos depósitos. Com a implementação do open banking, há quem diga que o aumento da competição bancária irá diluir consideravelmente essa fatia. Para Leandro Villain, diretor de produtos e serviços bancários da Federação Brasileira de Bancos, a Febraban, ainda é muito cedo para afirmar isso. “O open banking é um projeto complexo, em que você lidará com os dados dos consumidores, com um volume de informações muito grande. No final do dia, será bom para os grandes bancos também. Hoje, mais de 80% do tráfego de dados do sistema no Reino Unido está ocorrendo entre os grandes bancos”, afirma Villain.
Um dos maiores bancos digitais do país, o Banco Original já se diz preparado para a implementação do sistema. Recentemente, a empresa firmou uma parceria com a TecBan, dona do Banco24Horas, para dar um outro tipo de comodidade para os consumidores. “Nós identificamos que existe um problema para as fintechs que vão querer brigar em pé de igualdade com os grandes bancos. Por serem digitais, elas tinham alguma dificuldade fazer o dinheiro chegar a máquinas de autoatendimento. E nós firmamos uma parceria com a TecBan exatamente para oferecer essa possibilidade às fintechs”, diz Raul Moreira, diretor-executivo de TI, produtos e operações do Banco Original.
Novos hábitos
A pandemia da Covid-19 aumentou a preocupação dos brasileiros com sua situação financeira. Em um ambiente de desemprego já elevado, a paralisação dos negócios levou à suspensão de contratos de trabalho e à redução de salários. Com isso, 68% dos entrevistados pelo estudo intitulado EY Future Consumer Index disseram estar muito preocupados com os efeitos da pandemia sobre sua situação financeira, contra apenas 11% que demonstram otimismo. A consequência desse pessimismo é a mudança de hábitos no curto prazo: 75% dos entrevistados fizeram alterações na maneira como se relacionam com o dinheiro, seja gastando menos, seja adotando novas formas de pagamento.
Essa tendência se torna propícia para a adoção de tecnologias como o open banking e o PIX, que é o sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central. Apenas 7% dos entrevistados se disseram preocupados com questões de privacidade e 28% indicaram preocupação com segurança na adoção das plataformas digitais. Quanto mais os consumidores experimentam ferramentas financeiras on-line e novas possibilidades de pagamento que reduzem o atrito das transações, maior a possibilidade de que esse se torne um comportamento permanente no pós-pandemia. “Está acontecendo uma revolução silenciosa no sistema financeiro brasileiro. Algo que demonstra claramente isso é que mais de 900 instituições se inscreveram no PIX”, afirma Moreira.
Para Stelleo Tolda, COO do Mercado Livre, o processo de desconcentração bancária fará com que o nível de serviços oferecidos pelo mercado financeiro aumente exponencialmente. “Acho que hoje existe uma concentração no setor bancário e eles acabam se beneficiando muito da escala que têm, do poder de distribuição deles. Isso acaba gerando menos opção para as pessoas”, afirma. “A agenda do Banco Central visa justamente permitir que você contrate seus serviços de forma personalizada, como melhor lhe convém. Por um lado, é uma enorme oportunidade para players como o Mercado Pago. Mas, por outro, nos mantêm muito exigidos do ponto de vista da experiência do consumidor”. O open banking já foi implementado em outros mercados, como Reino Unido, Austrália, Canadá e Índia. Entender os processos de fricção na implementação desse sistema nos demais países é o que vai fazer com que o Brasil tenha o maior programa de open banking do mundo.