Desde que começou a se impor na economia internacional, no fim dos anos 1980, a globalização tornou-se uma força vista como irrefreável e irreversível. Pelas últimas três décadas, essa macrotendência, caracterizada por um fluxo mais livre de comércio, capital e pessoas através das fronteiras nacionais, moldou o mundo contemporâneo. Pode se argumentar que o processo induziu a uma padronização cultural mundo afora, prejudicou pequenos produtores locais em vários países, contribuiu para a decadência de algumas zonas industriais tradicionais do Ocidente e forjou uma concentração de renda e poder nas mãos de alguns poucos empresários multibilionários e de corporações gigantescas. Mas o saldo é inegavelmente positivo.
Milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza, em especial nos países emergentes. A circulação do conhecimento aumentou e uma pessoa nos rincões da África, Ásia ou América Latina tem, hoje, muito mais oportunidades para acessar ideias, avanços científicos e tecnológicos provenientes das partes mais ricas do globo do que em qualquer outro momento da história da humanidade.
A produção em escala mundial, com cadeias de suprimentos contemplando locais diversos e com mão de obra de menor custo, deu eficiência inédita à fabricação de itens. No início dos anos 2000, um produto que custava cerca de 90 dólares para ser produzido nos Estados Unidos, por exemplo, saía por 38 dólares caso fosse montado no Japão e inacreditáveis 2,50 dólares se a origem fosse a China — isso sem contar o valor de cerca de 1 dólar para ser enviado ao mercado americano. No mesmo período, cerca de 70% das mercadorias à venda nas grandes lojas de descontos americanas tinham como origem o gigante asiático. “As cadeias globais de valor ajudaram a desinflacionar o mundo, por meio da terceirização e da maior concorrência a partir dos anos 1990”, avalia Jongrim Ha, economista do grupo de perspectivas do Banco Mundial.
Essa era de intensa conectividade e ruptura de fronteiras, no entanto, começa a dar sinais de retração. Desde 2018, uma nova configuração baseada em maior controle, protecionismo e revisão de critérios de terceirização de produção tem ganhado tração, em um fenômeno batizado por alguns especialistas de desglobalização. Os primeiros indícios desse refluxo na integração global começaram quando o então presidente americano Donald Trump promoveu uma guerra comercial com a China de Xi Jinping e ameaçou até mesmo parceiros da Europa com tarifas e a substituição de importações. No começo de 2020, a entrada em vigor do Brexit e a pandemia de Covid deram novo impulso à tendência. No início da crise sanitária, diversos países perceberam estar à mercê de fornecedores de matérias-primas sob os quais não tinham controle, levando à falta de itens básicos como máscaras faciais, equipamentos médicos e vacinas. A guerra da Rússia contra a Ucrânia, que completa um ano, demonstrou que parceiros não confiáveis, como o país de Vladimir Putin, podem se tornar fonte de sérios problemas para o resto do mundo não só na questão de segurança como também na econômica, ao romper o equilíbrio de fornecimento de produtos e serviços.
Ainda é pouco clara a dimensão em que se dará a reversão da teia global que se consolidou nos últimos trinta anos, com os países preferindo produzir internamente ou em nações mais próximas ou confiáveis. Mas mesmo os mais conservadores admitem que as divergências entre as duas maiores economias do planeta, a China e os Estados Unidos, forçarão a um novo rearranjo das atividades econômicas mundiais. “O que veremos daqui para a frente será uma maior diversificação dentro daquilo que entendíamos como globalização”, diz o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero. Para o economista americano Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, será inevitável reconstruir as cadeias de suprimento de forma mais resiliente e diversificada, de modo a evitar futuras interrupções e garantir a segurança alimentar e a saúde pública.
No início do milênio, o jargão corporativo das empresas incorporou termos em inglês que se tornaram onipresentes planeta afora, como o outsourcing offshore, ou seja, a terceirização da produção ou de componentes para fábricas parceiras em outros países. Nesse novo sistema de produção, não importava se a mão de obra ficasse baseada do outro lado do globo, desde que fosse capaz de produzir com qualidade e a um custo baixo.
Agora, o léxico empresarial começa a incorporar outros neologismos como nearshoring, friendshoring, reshoring e powershoring, que significam, respectivamente, produção baseada em locações próximas, em nações amigas, no país de origem da empresa ou em local com boa eficiência energética. São esses conceitos que norteiam hoje decisões sobre onde e como serão fabricados produtos que vão de microchips, semicondutores, baterias, celulares ou carros elétricos. Para alguns especialistas, essa reversão pode ser complexa e lenta, mas está em pleno andamento. De acordo com um estudo do Boston Consulting Group (BCG), o comércio mundial terá uma evolução anual de 2,3% até 2030, abaixo da previsão de 2,5% para o crescimento econômico global. Se esses números se confirmarem, será a primeira vez em 25 anos que o comércio global crescerá a um ritmo mais lento do que o PIB planetário.
Além disso, o governo de Joe Biden, no propósito de controlar a onda inflacionária que atinge os Estados Unidos e estimular a economia, conseguiu aprovar duas leis, a Infrastructure Investment and Jobs Act (IIJA) e a Inflation Reduction Act (IRA), a qual concede subsídios e incentivos estimados em 80 bilhões de dólares. Juntas, elas induzem um nível de protecionismo inédito em países desenvolvidos desde a década de 50. O objetivo é estimular a transição para um modelo energético sustentável e uma política industrial extremamente ambiciosa, com investimentos internos em infraestrutura, tecnologias digitais, inteligência artificial, ciências, saúde, educação e a fabricação de chips, um dos grandes gargalos mundiais com os problemas de produção e logística durante a pandemia. A Europa segue na mesma direção. O bloco anunciou um plano de investimentos no setor energético a fim de romper a sua dependência com a Rússia, fornecedora de gás e petróleo para o novo mundo. Serão cerca de 300 bilhões de euros até 2030 em energias limpas, para se livrar do fornecedor agressor e dar adeus aos combustíveis fósseis.
Em uma combinação dos novos conceitos corporativos, alguns países têm se beneficiado do reverso da globalização. O México já registra movimentos concretos das empresas sediadas nos Estados Unidos. Com uma força de trabalho que custa aproximadamente um quinto da americana e laços sólidos com os vizinhos mais ricos, o país passa por um momento de abertura de novas fábricas e ampliações nas que já existem. A Mattel, fabricante de brinquedos como a boneca Barbie, vai transformar sua unidade na cidade de Monterrey na maior do mundo, especialmente voltada para produtos plásticos a serem exportados para o mercado americano. Na última semana, o presidente Andrés Manuel López Obrador anunciou que a próxima fábrica de carros elétricos da Tesla será construída no país e outras 400 empresas estão interessadas em transferir a produção da Ásia para o México. Na Europa, as grandes empresas focam sua atenção em países como Romênia, Turquia e Marrocos, capazes de manter a competitividade de custos e um alto grau de confiabilidade. Na Ásia, em meio às animosidades com a China, cerca de cinquenta corporações já anunciaram planos de mudar a produção para fora do país. A japonesa Nintendo, por exemplo, está transferindo a produção de seu console Switch para o Vietnã.
Em meio a esse movimento, o Brasil pode se beneficiar e estancar o drástico processo de desindustrialização que aconteceu nas últimas décadas, quando se tornou um importador de produtos asiáticos e fornecedor de commodities agrícolas, minerais e petróleo, principalmente para a China. Em 2022, o Brasil recebeu 91 bilhões de dólares em investimento direto estrangeiro, quantia alta historicamente — e há expectativas de valores maiores para o futuro próximo. Dessa forma, o país galgou três posições no ranking de investimento estrangeiro direto da Unctad, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, alcançando a 6ª posição mundial. “Se fizermos as escolhas certas e perseguirmos políticas públicas sábias, essas tendências globais serão positivas para o Brasil e para a América Latina”, afirmou a VEJA o americano Mauricio Claver-Carone, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) entre 2020 e setembro de 2022.
Os estudos do banco mostram que, se um país da América Latina aumentar sua participação nas cadeias globais de valor em 10%, poderá crescer seu PIB per capita entre 11% e 14%. O BID ainda estima que o nearshoring possa agregar anualmente 78 bilhões de dólares em exportações oriundas da América Latina e Caribe. Na América do Sul, o Brasil seria o país mais beneficiado no processo, podendo exportar quase 8 bilhões de dólares adicionais em mercadorias por ano. “As empresas estão cada vez mais procurando por fornecedores mais confiáveis e mais próximos. A necessidade de cadeias de suprimentos mais limpas e sustentáveis também está impulsionando essa realidade”, diz Claver-Carone.
Nesse sentido, além da proximidade do mercado consumidor americano, o Brasil se beneficia ainda de um potencial energético único, com sua matriz limpa e eficiente. A produção de hidrogênio como combustível a partir de energia renovável, por exemplo, tem custos altamente competitivos no país. Enquanto na China pode custar até 4 dólares por quilo e nos Estados Unidos até 7 dólares, no Brasil poderá ser produzido por cerca de 1 dólar. Mas, para que o país se reinsira com mais força nas cadeias globais industriais, precisará fazer a lição de casa. “O Brasil precisa adotar políticas corretas para ser reconhecido como eficiente pelos investidores”, diz Renato Baumann, pesquisador do Ipea e ex-subsecretário do Ministério do Planejamento. Para alcançar esse status, é necessário oferecer, além de estabilidade política e segurança de regras, uma boa previsibilidade da economia, inflação sob controle, câmbio pouco volátil e contas públicas equilibradas.
Outra variável decisiva é o ambiente de negócios descomplicado. Por isso, uma das medidas fundamentais a serem adotadas pelo Brasil é a realização da reforma tributária, uma das prioridades do atual governo. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também costura a aprovação de uma nova regra fiscal ainda este ano, com o objetivo de melhorar os prognósticos para a dívida pública. “O Brasil está se desindustrializando por causa de um sistema tributário caótico, que gera muita insegurança jurídica para os empresários, que pagam os impostos, e para nós, que recebemos”, disse Haddad em evento do Grupo Esfera Brasil, voltado para empresários e banqueiros, neste mês.
A reindustrialização também é uma das propostas centrais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O país perdeu cerca de 10 000 fábricas na última década, segundo o IBGE. Já nos cálculos da Confederação Nacional da Indústria (CNI), esse volume é ainda maior, superior a 30 000. Casos emblemáticos como o encerramento de operações da montadora Ford, da fábrica de telefones celulares da LG e da farmacêutica Roche fazem parte dessa estatística deplorável. Não à toa, a participação do setor industrial na composição do PIB vem encolhendo drasticamente — em 2011 era de 23,1% e em 2021 ficou em 18,9%.
Para o país fazer parte da nova reconfiguração global precisa incentivar investimentos em infraestrutura, tecnologia e formação de mão de obra. Um estudo conduzido pelo BID identificou 99 setores em que o Brasil já se destaca e nos quais poderia aumentar sua contribuição para o comércio global, incluindo bioeconomia, produção de softwares e serviços de inteligência artificial. Novas condições estão à mesa, e elas são favoráveis ao Brasil. Basta vontade política e o cuidado em manter a estabilidade econômica para o país poder aproveitar a oportunidade que se aproxima.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830