Há 134 anos, o farmacêutico americano John Pemberton (1831-1888) misturou noz-de-cola, extrato de folhas de coca e água em uma fórmula secretíssima e — eureca! — inventou a Coca-Cola, o refrigerante mais popular do planeta. Nem ela, no entanto, escapou do rombo que a pandemia abriu no consumo em geral. No auge das medidas de confinamento, entre março e junho, a empresa sofreu um baque de 28% no faturamento, em relação aos meses anteriores. No mercado de ações, sua avaliação caiu 14%, em comparação ao início de 2020. Esse retrocesso tem uma explicação óbvia: metade das vendas do refrigerante se dá em restaurantes, cafés, lanchonetes e hotéis, todos fechados na quarentena mais abrangente da história. “Foi o trimestre mais difícil em mais de um século de empresa”, disse James Quincey, presidente global da companhia. O fato, porém, é que a Coca-Cola já vinha perdendo consumidores, alvejada, mais até do que as concorrentes, pela preferência da geração atual de jovens, os chamados millennials, por produtos mais naturais e sustentáveis.
Segundo especialistas, a Coca-Cola está pagando o preço de ter se mantido presa à linha de bebidas, sem se expandir para outras áreas. Para efeito de comparação, durante a pandemia as perdas registradas pela Pepsi, sua principal concorrente, não passaram de 3%, justamente por causa das receitas provenientes de sua cesta de produtos alimentícios — um dos poucos setores a se expandir nestes tempos difíceis. Já a Coca-Cola, ainda que ofereça sucos, águas e leites em seu catálogo, continua a ter nos refrigerantes seu carro-chefe, e eles não param de perder o gás.
Jovens empenhados em levar vida saudável, um fenômeno global, se arrepiam diante da informação de que cada latinha de Coca carrega, em média, 35 gramas de açúcar, dez a mais do que o consumo diário recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Resultado: passado o pico do mercado, nos anos 1990, o consumo de refrigerantes nos Estados Unidos teve queda de 35%, acentuada na última década (veja no gráfico ao lado). O México, maior freguês mundial de bebidas gaseificadas, criou um imposto extra sobre refrigerantes para frear o hábito, medida adotada também por França, Noruega e Portugal. “Os jovens querem bebidas e alimentos que sejam reflexo do seu estilo de vida”, diz Rochelle Bailis, da Connexity, empresa de análise de consumo.
A Coca-Cola Brasil não divulga seus resultados, mas calcula-se que a queda do faturamento acompanhou o padrão mundial, mesmo tendo a empresa montado uma operação de guerra para manter o ritmo dos negócios em meio às restrições. Um programa-piloto de vendas através do WhatsApp, comandado por inteligência artificial, fez o número de varejistas saltar de 10 000 usuários para 180 000. Também foram incentivados os combos promocionais, que unem refeições e bebidas, em serviços de delivery de comida. Mas sobreviver na pandemia não resolve o problema maior da mudança de hábitos no planeta. No Brasil, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, houve redução de 53% no consumo regular de refrigerantes e bebidas açucaradas entre 2007 e 2018. No ano passado, a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir), que reúne 58 fabricantes, incluindo Coca-Cola, Ambev e Heineken, assinou um protocolo voluntário com o governo comprometendo-se a reduzir o açúcar de seus produtos até 2022. Ciente dos novos tempos, a Coca adquiriu marcas como as bebidas de soja Ades e o iogurte Verde Campo, e lançou o Café Leão. “Adequamos nosso portfólio às diferentes demandas de uma jornada diária”, diz Flávio Camelier, vice-presidente de transformação digital da empresa no Brasil. “Nosso olhar acompanha as oportunidades de inovação, e a pandemia acelerou esse processo.”
Diante das dificuldades crescentes, a matriz americana está dando início à mais ousada revisão no portfólio da Coca-Cola das últimas décadas. Das 400 marcas principais, metade representa apenas 2% do lucro — e o presidente Quincey, em balanço recente, deixou entrever que boa parte vai sumir das prateleiras. Uma das apostas para fugir dos refrigerantes é investir na linha de bebidas alcoólicas. Em agosto, a Coca lançou nos Estados Unidos (ainda sem previsão de chegar ao Brasil) a Topo Chico, uma água com gás alcoólica à base de frutas. A novidade vem tendo boa aceitação entre os cobiçados millennials, por ter menos calorias que a cerveja e teor alcoólico semelhante. “A Coca enfrenta uma questão séria. Em um mundo em total transformação, encontra-se em baixa na maioria dos países”, analisa Roberto Kanter, especialista em varejo da Fundação Getulio Vargas. Reinar entre os refrigerantes, definitivamente, já não tem o mesmo gosto.
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702