Mesmo com inflação baixa, alimentos em alta preocupam governo
Matérias-primas e commodities de produtos essenciais aceleram e apertam as margens de lucro de supermercados, aos quais o presidente pediu 'patriotismo'
Uma carta aberta assinada pela Associação Brasileira de Supermercados, a Abras, na noite do dia 3 de setembro, causou contrariação ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Na ocasião, diversas entidades que representam o setor no país alertaram que os empresários têm “sofrido forte pressão de aumento nos preços de forma generalizada repassados pelas indústrias e fornecedores”. Segundo a nota, a alta de preço em itens essenciais que compõem a cesta básica – como arroz, feijão, leite e óleo de soja – chega a superar 20% em 2020. Um dia após a carta das entidades que representam o setor, o presidente pediu “patriotismo” aos donos de supermercados. A inflação da categoria chega em péssima hora para ele, num momento em que o governo acabara de anunciar uma redução nos valores do auxílio emergencial. Tanto que Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, se reunirão com o presidente da Abras, João Sanzovo, nesta quarta-feira, 9. Também nesta quarta, o IBGE divulga o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que deve mostrar a pressão inflacionária nos alimentos.
O arroz, por exemplo, foi parar nas redes sociais. Com o preço de um pacote de cinco quilos acima dos 40 reais, os consumidores foram à internet reclamar. Na terça-feira, 8, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, resolveu dar um basta: “O arroz não vai faltar. Agora ele está alto, mas nós vamos fazer ele baixar. Se Deus quiser, teremos uma supersafra no ano que vem”, afirmou, referindo-se ao preço do item essencial aos pratos dos brasileiros. Bolsonaro, por sua vez, fez declarações que vão além disso. Pediu que os supermercados, se possível, não procurassem obter qualquer lucro sobre o preço dos itens essenciais. “Eu tenho apelado a eles. Ninguém vai usar caneta Bic para tabelar nada. Não existe tabelamento. Mas [estamos] pedindo para que o lucro desses produtos essenciais para a população seja próximo de zero. Eu acredito que, com a nova safra, a tendência é normalizar o preço”, disse, em uma videoconferência na manhã desta terça.
Para as entidades do setor supermercadista, o aumento se deve a fatores como o câmbio, a diminuição das importações e o crescimento da demanda interna durante a pandemia. Até julho, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA, indicador oficial do país, acumulava alta de 2,31% em um ano. No mesmo período, no entanto, o avanço nos preços de itens de alimentos e bebidas é de 7,61%. “Existem aumentos sazonais, ditados por efeitos como pouca oferta em determinada época do ano e do aumento de preços das commodities”, aponta André Braz, coordenador do indicador IPC do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre). “Isso aparece de forma mais clara, por exemplo, no trigo. Toda a família de derivados do trigo está subindo porque a nossa moeda perdeu valor e acaba saindo muito mais caro para importarmos. Então, todos os itens que compõem essa família acabam sendo pressionados. É o caso do pão francês, biscoito, macarrão e da própria farinha de trigo.”
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Clique e AssineA soja é outra commodity que tem se tornado mais cara, o que deve pressionar os preços de carnes, por exemplo. “A soja é base para ração animal. Nesta época do ano, as condições de pastagens ficam muito comprometidas e os pecuaristas têm de entrar com ração. Ou seja, o custo da ração pressiona as margens dos pecuaristas. Além disso, temos mais exportação desse tipo de produto à região asiática, o que desabastece o mercado doméstico”, afirma Braz. Em suma, boa parte das pressões tem duas causas: dólar alto e menor oferta para o consumo interno. Para Fabio Bentes, economista sênior da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), outro fator que explica a alta nos preços é que o nível de atividade de alguns segmentos se recuperou antes do imaginado. “Boa parte da inflação baixa que se esperava para este ano era num contexto de cenário muito negativo. Mas nós tivemos surpresas conjunturais, sobretudo no comércio e na indústria. Ou seja, os segmentos mais aquecidos devem ter reajustes acima da média em relação aos outros mercados”, diz.
Mas o efeito inflacionário não se encontra apenas no setor supermercadista. Quem costuma pesquisar preços semanalmente, já encontra variações acima do normal para remédios, eletrodomésticos da linha branca, móveis, eletroeletrônicos e materiais de construção. “Não é de hoje que essa pressão vem se formando ao produtor. As matérias-primas já estão sofrendo com os efeitos da desvalorização cambial e da própria retomada da economia em outras regiões, principalmente na China”, diz Braz. “Os preços de produtos da linha branca, como máquinas de lavar, geladeira, microondas e fogão, estão subindo de forma acelerada nos últimos meses. O que explica esse movimento é exatamente os custos. Esses eletrodomésticos são fabricados a partir de chapas de aço, que são bens intermediários derivados do minério de ferro, que estão sendo mais demandados do mercado chinês”, complementa.
Bentes, da CNC, acredita que o reajuste de preços faz parte de uma normalidade de setores que sofreram mais durante a pandemia, mas que já voltaram a registrar alta nas vendas. “O que acontece com os preços de alimentos e dos materiais de construção é recomposição de margem. Mas acho que esses reajustes, principalmente nos supermercados, não perdurarão por muito tempo. Apesar de menos espaço para produtos importados, eles não devem ficar muito mais caros, pois sofrem muita pressão competitiva”, afirma. Conforme a pandemia do novo coronavírus for se arrefecendo no país, será normal, ainda, imaginar um cenário em que o setor de serviços, como bares e restaurantes, volte a roubar espaço do consumo no lar, o que deve inibir novos reajustes no preço de alimentos. “A tendência é que, no futuro, nós voltemos a ver o consumidor trocando a alimentação em casa pelo consumo fora do lar”, diz Bentes. Mercados que dependem do consumo de forma presencial podem demorar mais para fazer reajustes. É o caso, por exemplo, do setor de vestuário.
O que explica a falsa sensação de controle da inflação hoje é a deflação de itens como transportes, combustíveis e recreação. O novo coronavírus causou um descompasso na atividade econômica do país. Enquanto o feijão e o arroz, por exemplo, estão respectivamente com inflação acumulada em 23,1% e 21,1% este ano, há mercados que sequer voltaram a funcionar. “Vários serviços não estão subindo de preços por nem conseguir prestar o serviço. É o caso de hotelaria, passagens aéreas, cinema, teatros e casas de shows. Muitos deles não estão funcionando ainda. É o que está segurando a inflação ao consumidor. A cesta desses serviços responde por 30% da inflação ao consumidor”, afirma Braz. Outro fator importante é que o reajuste de planos de saúde previsto para o ano foi postergado para 2021. Ao que tudo indica, o Brasil saiu de um cenário deflacionário no segundo trimestre para pressões de inflação que podem durar um tempo. E o IPCA referente ao mês de agosto, que será divulgado nesta quarta-feira 9, deve confirmar essa tendência.