Por que o longo reinado do petróleo ainda está longe do fim
Demonizado pelos ambientalistas e pivô de manobras especulativas, o produto segue como o elemento mais importante da matriz energética global
Cercados de expectativa, os leilões de campos petrolíferos costumam ser usados como termômetro para o mercado avaliar a opulência e a vitalidade de um setor crucial da economia brasileira. Pelo raciocínio, quanto mais dinheiro se arrecada com os lances, melhores as perspectivas de um ramo marcado por gigantismo e números astronômicos. Na quarta-feira 6, a negociação de uma parte remanescente dos leilões de reservas do pré-sal, batizada tecnicamente de cessão onerosa, tornou-se uma exceção a essa regra. A operação, que previa atrair 106 bilhões de reais para os cofres públicos, fechou a rodada com a arrecadação de cerca de 70% do valor estimado e o encalhe de duas das quatro áreas ofertadas na Bacia de Santos. Em um primeiro momento, o mercado regurgitou mau humor, o dólar subiu repentinamente, e a bolsa caiu. Os ânimos se acalmaram pouco a pouco, à medida que ganhava corpo a percepção de que o resultado frustrante se devia mais ao modelo adotado para a operação do que às perspectivas do setor petroleiro. Feitas as contas e avaliados os danos, constatou-se que o setor seguia firme e forte, e que o otimismo que o cerca estava preservado.
A diferença entre a expectativa de ganhos e o valor arrecadado se explica principalmente pela atuação da Petrobras na operação. Aproveitando a vantagem que as regras permitiam, a companhia brasileira, em consórcio com duas empresas chinesas, exerceu seu poder de preferência na compra das áreas mais promissoras. Com isso, as outras quatro companhias habilitadas a participar desistiram de fazer lances pelas duas áreas remanescentes. No pregão da Bolsa de Valores de São Paulo, as ações preferenciais da Petrobras chegaram a cair 8,5% logo após o leilão, mas no decorrer do dia subiram novamente e fecharam em ligeira alta de 0,2% em relação à terça-feira 5. “O resultado, mesmo não sendo o que o governo esperava, não muda a percepção otimista do setor de petróleo, que atravessa um momento bastante favorável, tanto no Brasil quanto no exterior”, explica o economista Ricardo Teixeira, da Fundação Getulio Vargas (FGV). Tanto que, no dia seguinte, quatro de cinco áreas oferecidas em outro leilão — este bem menor, com arrecadação de 5 bilhões de reais — foram esnobadas, mas o mercado nem ligou.
No cenário internacional, o setor foi agitado no domingo 3, quando a Saudi Aramco, a maior petrolífera do mundo, pertencente ao governo da Arábia Saudita, deu início a seu processo de abertura de capital na Bolsa de Valores de Riyadh, capital do país. A previsão é que a operação levante até o fim de novembro o equivalente a 40 bilhões de dólares com a venda de cerca de 2% das ações da companhia. Com isso, a oferta inicial da petroleira se tornará a maior da história, superando os 25 bilhões arrecadados pelo gigante chinês do comércio eletrônico Alibaba em 2014. Caso a estimativa dos sauditas se confirme, a Aramco terá um valor de mercado de 1,5 trilhão de dólares, cifra que a transformará na companhia de capital aberto mais valiosa do planeta. A operação alavancou para patamares inéditos uma indústria que flerta continuamente com a berlinda, seja por questões geopolíticas, econômicas ou ambientais.
Especulações envolvendo o petróleo costumam escorregar com facilidade para exageros. Em março de 1999, a prestigiada revista inglesa The Economist previu em uma reportagem de capa que o preço do barril despencaria de 17 para 10 dólares, com enorme possibilidade de chegar a 5 dólares, dada a copiosa oferta de óleo despejada pelos países produtores no mercado. No mês seguinte, o cru custava 28 dólares o barril e nunca mais baixou desse patamar — hoje está em 55 dólares. A oferta da cessão onerosa da semana passada chegou a ser definida como “megafracasso do megaleilão”, uma boa frase de efeito, mas vazia de significado diante da boa forma do setor petrolífero brasileiro. Da mesma maneira, não são poucos os que invocam o fim da era dos combustíveis fósseis por questões ambientais. Parte dessa certeza vem de ações como o recente anúncio feito pela prefeitura de Paris de que os carros movidos a gasolina e diesel serão banidos da capital francesa até 2030. Da mesma maneira, embalam o raciocínio demonstrações como a ocorrida no último Salão de Frankfurt, com todas as grandes montadoras a ostentar modelos elétricos ou híbridos e a ascensão fenomenal da montadora americana Tesla, que há duas semanas superou a veneranda General Motors em valor de mercado.
Ninguém duvida que os automóveis, ônibus e caminhões poluidores estão com os dias contados. Mas, ainda que o número de veículos elétricos aumente drasticamente, a energia que eles consomem terá de ser gerada, em grande parte, por usinas termelétricas abastecidas com derivados do petróleo. Além disso, os países emergentes levarão um tempo bem maior para aderir às novas tecnologias. “É consenso que o processo de transição da matriz energética é um fenômeno global irreversível. O que não se sabe é quanto tempo essa revolução demorará para acontecer”, afirma Carlos Assis, sócio da consultoria Ernst & Young.
Levando-se em conta a produção de petróleo atual, a parcela destinada ao uso como combustível de veículos corresponde a pouco mais de um terço do total. O resto é direcionado ao processamento em petroquímicas para a produção de plásticos, têxteis e fertilizantes. Em tais atividades, ainda não há substitutos em condições de competir na relação custo-benefício. Não à toa, um estudo global da consultoria PwC mostra que 91% dos executivos chefes de empresas petrolíferas acreditam na melhora dos negócios nos próximos três anos. Tal otimismo reflete a constatação de que o mundo ainda não se adaptou ao horizonte em que o petróleo será coisa do passado. Apesar da tendência crescente de repensar a produção de energia global, falta estrutura para que fontes renováveis se consolidem como uma alternativa viável. “Ainda não há tecnologia suficiente para atender a toda a demanda. Para que as empresas consigam fazer essa transição, manter um fluxo de oferta constante é extremamente necessário”, diz Anderson Dutra, sócio da consultoria KPMG.
Um dos cenários catastróficos desenhados a partir da crise do petróleo de 1973 apontava para o súbito desaparecimento do óleo negro. Depois de quase cinco décadas, a racionalização dos métodos de extração e a descoberta de novas reservas, como a do pré-sal brasileiro, lançaram para o futuro relativamente remoto a perspectiva de isso ocorrer. Estudos recentes revelam que a demanda por petróleo continuará subindo até 2050 — apenas a velocidade de crescimento será menor. No Brasil, estima-se que a atividade petrolífera movimente 900 bilhões de reais em investimentos nos próximos oito anos. Nesse mesmo período, a arrecadação total de impostos com o setor pode chegar a 728 bilhões de reais. Apenas a exploração do pré-sal empregará 474 000 pessoas, o dobro das vagas que existem hoje. Por mais que se discuta o fim da era do petróleo, torna-se cada vez mais conveniente para os brasileiros que isso ainda demore muito para acontecer.
Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660