Por que os pedidos de recuperação judicial disparam em 2023
Só uma reativação da economia poderá reverter essa tendência negativa
Crises econômicas são inerentes ao capitalismo, e, inclusive, são consideradas benéficas em ocasiões específicas, em economias de livre mercado dinâmicas, por estimular inovações e as renovações das empresas. Nesse contexto, as mais ineficientes sucumbem para dar lugar a outras mais inovadoras. Em cima desse fenômeno, o austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950), um dos mais influentes economistas do século XX, formulou a teoria da destruição criativa, um processo de mutação que “renova a estrutura econômica por dentro, destruindo incessantemente a antiga e criando uma nova”. Lindo. Excelente. O problema é quando as derrocadas acontecem por conta de desajustes do ambiente econômico, e não por conta de inovações tecnológicas ou modelos de negócios.
Esse segundo cenário, lamentavelmente, parece tomar a forma de uma tempestade no horizonte econômico brasileiro. Depois de um período de queda durante a pandemia, o número de empresas com pedidos de recuperação judicial no Brasil cresceu exponencialmente. Em 2022, graças aos estímulos como adiamento de pagamento de dívidas e juros mais baixos, foram 866 casos. Nos dois primeiros meses deste ano, 195 empresas já entraram em recuperação judicial. Diante desse quadro, a consultoria Alvarez & Marsal, especializada em processos de reestruturação de empresas, como os das Lojas Americanas e do Grupo Petrópolis, estima que os pedidos cheguem a 1 300 em 2023, crescendo 60% frente ao ano passado.
A onda atual tem como marco simbólico o caso das Lojas Americanas, que por meio do seu então presidente Sergio Rial anunciou, nos primeiros dias do ano, um rombo contábil, agora estimado em dívidas de 48 bilhões de reais. Se até uma empresa administrada por três dos homens mais ricos do país, o trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira, e que estava na melhor categoria de crédito do mercado está em apuros, era sinal de outras más notícias vindo pela frente. E elas vieram. A Oi, que estava saindo de sua própria recuperação judicial, pediu para entrar em um novo processo, vergada por dívidas de 43,7 bilhões de reais. Nas últimas semanas foi a vez do Grupo Petrópolis, dono da cerveja Itaipava, e da rede de moda Amaro. Já a Livraria Cultura teve a sua falência requerida. Em paralelo, outras empresas correram em busca de renegociar dívidas para evitar o mesmo caminho, como Light, Azul, CVC, Tok&Stok e Marisa.
Tamanha enxurrada tem como causa principal o inóspito cenário de rápido aumento dos juros no Brasil, depois de um período em que a Selic se estabeleceu em um recorde de baixa, chegando a 2% ao ano em 2020. Com esse patamar, o custo da dívida acabava ficando em torno dos 5% para grandes empresas. O objetivo dos bancos centrais era inundar os mercados com estímulos durante a pandemia, mas o efeito colateral disso foi uma inflação generalizada pelo mundo, que acabou depois exigindo uma veloz alta dos juros. Agora, com a Selic em atuais 13,75%, as empresas passaram a pagar acima de 20% ao ano em juros. “Elas não conseguiram aumentar a geração de caixa na mesma velocidade em que cresceram a taxa de juros e suas dívidas”, afirma Eduardo Seixas, sócio-diretor da Alvarez & Marsal.
Para piorar, o crédito — como dizem alguns economistas, o “sangue vital da economia” — secou. Enquanto as empresas conseguem tomar dinheiro emprestado, elas podem sobreviver e rodar o caixa, comprando e vendendo produtos. Se isso desaparece, fica mais difícil. De acordo com dados do Banco Central, os empréstimos concedidos pelas instituições financeiras para as companhias caiu 8,6% apenas de janeiro para fevereiro. Também nesse ponto o caso das Americanas foi emblemático. Com o potencial de causar prejuízos multibilionários aos credores, os bancos registraram provisões em seus últimos balanços divulgados, o que afetou os seus lucros e o preço de suas ações. Como resultado, eles passaram a ficar mais ariscos em renovar empréstimos para as empresas. Tanto nos casos da Light, da Marisa e da Petrópolis, parte dos problemas está nas dificuldades em tomar empréstimos para pagar dívidas que venceriam no curto prazo — algo que teria sido possível antes do baque causado pelas Americanas.
Em meio a tal cenário de endividamento crescente e de crédito escasso, as agências de classificação de riscos passaram a avaliar de forma mais rigorosa as empresas brasileiras. A Fitch Ratings já rebaixou a nota de crédito de treze delas, desde o início do ano, mais do que em 2022 inteiro. Evidentemente, isso deixa as empresas numa dificuldade ainda maior para conseguir novos empréstimos. “Num ano normal, a média é de nove rebaixamentos”, conta Ricardo Carvalho, diretor da agência. “O mercado de emissões para financiamento de empresas simplesmente parou após o caso Americanas. Mas isso só ajudou a acelerar o processo. Os balanços das companhias do quarto trimestre ainda não estavam publicados e não se tinha ideia de quanto esse período já tinha sido ruim.” Do lado do consumidor, a situação é igualmente desanimadora. Em fevereiro, 64,5 milhões de brasileiros estavam com crédito negativo, em torno de 40% dos adultos do país. Dessa forma, é improvável imaginar que a demanda por parte dos clientes será forte nos próximos meses para ajudar as empresas. “Estamos experimentando um evento ‘cisne negro’. A pandemia causou uma crise imprevisível e devemos esperar mais fenômenos do tipo no futuro, com uma dívida global insustentável de 240 trilhões de dólares, envelhecimento da população mundial e as mudanças climáticas”, diz o reestruturador de empresas Salvatore Milanese, fundador da Pantalica Partners.
Agora, para deixar esta temporada negativa para trás, não há atalhos. Para muitas empresas em dificuldades, restará entrar e sair da recuperação, um mecanismo existente há duas décadas no Brasil. Ele é capaz de proteger companhias viáveis e, de fato, é um avanço em relação à anterior lei da concordata, que invariavelmente levava à falência. “Independentemente do momento, a Petrópolis não pretende vender suas fábricas e marcas e seguirá honrando os seus compromissos financeiros”, informou, por meio de nota a VEJA, o grupo cervejeiro. Já para o ambiente econômico como um todo, a melhora só deve vir após a diminuição dos juros e a volta de uma atividade econômica mais robusta. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou recentemente sua nova regra de gastos, que significou uma importante vitória frente aos terraplanistas econômicos do PT, mas que ainda não está clara o suficiente para despertar otimismo no setor privado. Além disso, o texto do arcabouço terá de passar pela alcunha do Congresso e pode enfrentar problemas. Do outro lado, a inflação ainda resiste em alguns setores, o que pode provocar uma demora na queda de juros. Ou seja: a jornada pode ser mais longa que o esperado (e muitas empresas talvez não aguentem esse percurso sem pedir arrego).
Colaborou Larissa Quintino
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2023, edição nº 2836