O mercado imobiliário brasileiro tem demonstrado nos últimos anos uma notável resiliência, capaz de atravessar turbulências e tempestades como a pandemia de Covid-19, enquanto diversas outras áreas da economia vergaram sob o impacto da doença e do isolamento social. Mas, se foi uma trajetória bem-sucedida, não se pode dizer que tenha sido tranquila ou baseada numa relação de harmonia entre construtoras e fornecedores. Um exemplo é a disputa virulenta que se instalou nas entranhas do setor a partir de 2020 e se estende até os dias de hoje, envolvendo a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), entidade que congrega 98 sindicatos e associações patronais do setor da construção, e alguns dos gigantes que produzem matérias-primas, incluindo siderúrgicas, fabricantes de cimento e de resinas plásticas para tubulações.
Entre os mais recentes desdobramentos de uma novela que acumula denúncias, brigas judiciais e trocas de acusações está o indiciamento criminal do presidente da CBIC, José Carlos Martins, em um inquérito por denunciação caluniosa e incitação ao crime de cartel na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) no Rio de Janeiro. No indiciamento, ocorrido depois de várias tentativas frustradas de ouvir Martins por cartas precatórias, o delegado Pablo Dacosta Sartori fundamenta sua decisão apontando que “o indiciado através de e-mail amplamente divulgado fez acusações falsas contra várias empresas renomadas gerando procedimentos investigativos e administrativos contra as empresas vítimas”.
O inquérito, registrado com o número 218-01296/2021, toma como base uma denúncia apresentada por Martins em setembro de 2020, ao secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia, Geanluca Lorenzon. No documento ele acusava, sem provas, um grupo de grandes empresas dos setores de siderurgia, cimento e petroquímica de se aproveitar da justificativa da redução da atividade de suas fábricas na pandemia para provocar escassez de produtos no mercado e promover aumentos abusivos de preços. Também apontava ao governo riscos que tais condutas poderiam acarretar à economia, como atrasos em obras (entre elas as do programa federal de infraestrutura Pró-Brasil), demissão de funcionários e aumento de preços nos imóveis. Nada disso, no entanto, ocorreu.
A questão da importação é particularmente cara a Martins. Em março de 2021, ele protagonizou um podcast oficial da CBIC veiculado no YouTube em que conclama os associados a se unirem em um esforço para buscar no mercado internacional, com o apoio da entidade, produtos similares aos brasileiros para pressionar os fornecedores locais. A iniciativa causou estranheza porque, ao contrário de sua argumentação com o governo, tal medida prejudicaria empresas nacionais e poderia, aí sim, provocar o desligamento de empregados brasileiros. Meses depois, uma entidade filiada à CBIC baseada no Paraná (o estado natal de Martins) trouxe cerca de 40 000 toneladas de aço da Turquia, destinadas a pouco mais de uma centena de construtoras, todas colaboradoras da CBIC.
Encaminhado ao Ministério Público do Rio, o inquérito criminal sobre Martins foi remetido de volta à delegacia, para que sejam realizadas novas tentativas de ouvi-lo por meio de carta precatória, procedimento que não obteve sucesso até o fechamento desta edição. Procurado por VEJA, Martins alega que nunca soube do inquérito penal. “Jamais chegou qualquer carta precatória até a minha mão. E, se alguém estiver falando o contrário, vai ter de provar que tentou me encontrar ou qualquer coisa desse tipo. É um absurdo esse indiciamento”, afirma. A ação no Rio, entretanto, não é a única desavença na qual Martins e a CBIC estão envolvidos. Ele vem sendo alvo de acusações semelhantes em vários órgãos. Num dos processos, o juiz julgou a ação improcedente, mas o tiroteio continua. Como se vê, a novela que tem como pano de fundo os pujantes canteiros de obras do país ainda está longe do capítulo final.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813