Um fenômeno raro animou os brasileiros que realizam operações financeiras com base no câmbio ou pretendem viajar ao exterior. Em seis dias consecutivos, até a quarta-feira 23, a cotação do dólar caiu frente ao real. Ao baixar para 4,84 reais, a moeda americana chegou ao seu menor valor desde a disparada deflagrada pelo início da pandemia da Covid-19, há pouco mais de dois anos. Com isso, em 2022, o real já se valorizou 13,4%, tornando-se a moeda de melhor desempenho entre as 25 mais fortes do planeta. As justificativas dadas pelos analistas para tal guinada costumam variar entre o interesse dos estrangeiros em investir nas empresas de commodities brasileiras e o impacto da subida dos juros no país, atualmente em 11,75% ao ano.
Sejam quais forem as razões para a surpresa positiva, a desvalorização de curto prazo do dólar espelha uma preocupação de longo prazo que ronda as altas esferas das finanças globais. Nos últimos anos, tornou-se foco de discussões entre especialistas a possibilidade de a moeda americana perder seu status de referência mundial, utilizada como reservas pelas nações, para as trocas comerciais internacionais e para investimentos entre fronteiras. Se a ascensão da China como uma grande potência econômica e das criptomoedas já chamavam a atenção, o tema adquiriu relevância ainda maior com a invasão da Ucrânia pela Rússia, e as consequentes sanções econômicas levantadas pelas potências ocidentais encabeçadas pelos Estados Unidos.
Especialmente nos últimos vinte anos, as reservas internacionais em dólares vêm encolhendo de forma lenta e gradual. Estima-se que cerca de 60% das reservas do mundo são compostas por moeda americana, índice que já chegou a ser superior a 80%, até 1975. Com a guerra, é provável que o dólar terá pela frente a maior ameaça ao seu domínio. “Com o poder dos Estados Unidos para aplicar sanções financeiras que abalam a economia global, a moeda começa a perder credibilidade”, diz José Marcio Camargo, economista-chefe da gestora Genial Investimentos.
De olho na perspectiva de um potencial contra-ataque financeiro, do tipo utilizado anteriormente em relação a Irã e Venezuela, a Rússia de Vladimir Putin já vinha se preparando há tempos para depender menos da moeda americana. Em 2011, passou a se desfazer dos títulos do Tesouro americano que detinha, substituídos em grande medida por ouro. Em 2000, as reservas em ouro da Rússia somavam 24,7 bilhões de dólares. Hoje, estão na casa dos 133,6 bilhões de dólares, representando 21,2% dos 631,1 bilhões de dólares do Tesouro russo. Em meio às animosidades no fim do governo de Donald Trump, a China também sinalizou que reduziria em até 20% seu 1,047 trilhão de dólares em papéis do Tesouro americano.
Meses antes de a Rússia invadir a Ucrânia, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já alertava que a moeda americana seria a principal arma a ser usada contra os russos. “Se eles invadirem, vão pagar. Seus bancos não poderão negociar em dólares”, ameaçou. Três dias após a ofensiva militar, a promessa foi cumprida e os russos foram excluídos do SWIFT, a principal rede de pagamentos globais, que conecta 11 000 instituições financeiras em mais de 200 países. Dessa forma, o rublo despencou em mais de 30%, e se espera um encolhimento de até 12% da economia russa. Ao tornar o dólar uma arma, os Estados Unidos demonstram força, mas também criam uma reação contrária. Há duas semanas, a Arábia Saudita divulgou que avalia vender petróleo para a China em iuane, para a qual vende um quarto de suas exportações da commodity. Atualmente, 80% das transações de petróleo pelo mundo são feitas em dólar.
Um dos grandes objetivos estratégicos da China é justamente fortalecer o iuane no cenário global como alternativa à moeda americana. “Muitos países têm balança comercial mais favorável à China do que aos Estados Unidos, e ela hoje possui enorme presença comercial na América Latina, Europa e Oriente Médio”, diz Pablo Ibanez, professor de geopolítica da Universidade Fudan, de Xangai. Com a Nova Rota da Seda, uma série de investimentos em infraestrutura internacional, a China possui acordos com 145 países, os quais incluem trocas significativas em iuanes.
Se a hegemonia do dólar parece estar se enfraquecendo, ainda não existe no planeta uma moeda capaz de tirar sua liderança nas transações globais. Apesar de o iuane ter saído da 35ª posição, em 2010, para ser a quarta moeda mais transacionada no sistema financeiro global, cerca de 40% dos pagamentos globais no sistema SWIFT são em dólares, ante apenas 2,7% em iuanes. Para as criptomoedas, que também estariam sendo utilizadas pela Rússia para comercializar produtos, falta a estabilidade de valor. “O mundo ainda não perdeu o domínio do dólar e não perderá tão cedo”, diz Steve Hanke, professor de economia aplicada na Universidade Johns Hopkins. Mas é fato que a moeda americana já reluz um pouco menos do que brilhou no passado.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782