O coronavírus estampou nas manchetes brasileiras a dura e a triste realidade de funcionários sendo mandados embora e pequenos empresários vendo suas receitas ceifadas pela ausência de atividade. A situação evidenciou ainda mais o abismo que separa a intranquilidade do sossego de trabalhadores privados e públicos, cuja grande parte passou praticamente incólume pelo momento mais árduo da economia dos últimos 100 anos. À exceção da proibição temporária, pedida por Paulo Guedes, de que recebam aumento como contrapartida ao envio de recursos para estados e municípios, os funcionários públicos passarão sem muitas cicatrizes pela pandemia. Como a Constituição garante a estabilidade dos servidores e de seus salários, em média 96% mais altos do que em funções similares na iniciativa privada, o cenário inspira cuidados.
Antes da pandemia atingir o cotidiano brasileiro, o ministro, ao lado de seu secretário de Desburocratização, Paulo Uebel, havia desenhado o projeto de reforma do Estado. O texto está travado no Palácio do Planalto, nas gavetas do presidente Jair Bolsonaro, até hoje. O presidente, vá lá, nunca foi um entusiasta do tema. Vindo do meio militar, o ex-deputado sempre mostrou apreço por seus pares. “Com toda a certeza, fica para a semana que vem”, respondeu o presidente à rádio BandNews quando indagado sobre o envio do projeto, em meados de junho. Membros do Ministério da Economia admitem que o caminho pela aprovação é uma longa caminhada, e o projeto pode efetivamente só sair do papel a partir da próxima gestão, em 2023. Em meio à inércia do presidente em enviar seu projeto, deputados e senadores começaram a se movimentar para avançar nas discussões sobre o tema.
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Clique e AssinePara acelerar as discussões, o deputado Tiago Mitraud (Novo-MG) organizou uma frente parlamentar para dar vazão ao trâmite envolvendo as mudanças na estrutura do funcionalismo público brasileiro. Lançada oficialmente nesta segunda-feira, 29, o grupo compreende parlamentares de diversos partidos e matizes para estruturar um projeto, costurado junto com Uebel, de soluções para modernizar o serviço público no país. “Há muitos subtemas quando falamos de reforma administrativa. Bolsonaro disse que vai mandar ano que vem, e podemos ir nos aprofundando neste tema para propor uma série gradual de mudanças na estrutura do sistema público”, diz o deputado. Para isso, a frente se organizou em diversos subtemas que devem ser alvo de reestruturações.
O problema ainda é a falta de unidade. Sem um projeto amplo ou a ratificação de uma pauta em comum, os congressistas ainda caminham no escuro e discutem textos difusos. A primeira pauta a ser discutida pelos congressistas é a medida provisória que facilita a contratação de servidores em regime temporário, editada por Bolsonaro no começo de março, para enxugar os trâmites burocráticos e tornar menos morosa a contração de pessoal. Além disso, os gastos com salários têm caráter passageiro. Apesar da participação de Uebel, congressistas reclamam da inércia de coordenação do Palácio do Planalto em torno da pauta — cuja responsabilidade de autoria passa pelo Executivo — e a falta de coesão quanto ao desenho das iniciativas.
As alterações em estudo, ainda sem um texto definido, englobam mecanismos de seleção, contratação e fiscalização de desempenho dos servidores, além da extinção de cargos, readequação dos salários e o fim da estabilidade. O deputado Alex Manente (Cidadania-SP), por exemplo, ficou responsável por estruturar sistemas de avaliação de desempenho dos servidores públicos e o desenho para pôr fim a progressão automática, estruturando mecanismos de promoção por critérios meritórios — e instituir a possibilidade de demissão pelos mesmos critérios. “A avaliação de desempenho hoje existe, mas não tem impacto no crescimento do servidor. Queremos traduzir isso por meio do fim da progressão automática e incentivar os bons funcionários, sem precisar punir”, afirma ele. Entre os mecanismos de avaliação em estudo, está a possibilidade de os servidores serem avaliados diretamente pela população, por meio da internet.
A frente será composta por 14 parlamentares, sendo 12 deputados e dois senadores, Antônio Anastasia (PSD-MG) e Kátia Abreu (PP-TO). A função primordial dos senadores será de articular apoio entre as duas casas para consolidar as mudanças. “O Congresso atual é reformista na sua composição e simpático a essas pautas”, diz Anastasia. “Nosso papel agora será criar um ambiente favorável para termos uma maioria simpática, não ao conteúdo em si, mas à ideia de uma reforma do Estado. Queremos ter uma proposta consolidada no ano que vem, para ser o mais breve possível”, encerra.
Cerca de 83% dos servidores públicos federais estão entre o segmento dos 20% mais ricos do país. Entre as carreiras, estão funções necessárias para o funcionamento da máquina pública, como os cargos de juízes e desembargadores, que demandam estabilidade e salários altos. No rol de atividades,porém, ainda não extintas pelo atrasado sistema público do país, estão operadores de telex, discotecário, operador de videocassete, e especialista de linotipo. Cargos como estes representam 223 mil servidores nessas categorias, ou 42% do total de servidores do governo federal. Para se ter ideia, um jurássico datilógrafo recebe mais de 8 mil reais em autarquias federais. Toda essa complexa herança, a cada ano que se passa sem uma reforma, continua a amarrar o desenvolvimento do país, corroendo o orçamento público e desviando gastos que deveriam ser destinados para serviços essenciais. A reforma precisa acontecer logo.