Pela sétima vez consecutiva, o Banco Central diminuiu, na quarta-feira, 8, a taxa básica de juros da economia, a Selic, agora ancorada em 10,5% ao ano. Apesar das pressões do governo, especialmente do presidente Lula, o BC não se curvou ao ambiente carregado e manteve sua jornada de combate à inflação. O corte de 0,25 ponto porcentual da Selic, abaixo do 0,50 desejado — ou até mais do que isso — pelos petistas, é uma decisão sensata. Embora distante do que foi nos períodos mais críticos da história econômica do país, a inflação sempre está à espreita. No caso brasileiro, não costumam faltar oportunidades para ela renascer com toda a força, do desequilíbrio das contas públicas ao cenário externo turbulento. Se a disparada de preços foi controlada, isso é resultado direto da atuação firme do BC nos últimos anos, elevando as taxas de juros antes de outros países. Com isso, derrubou uma inflação que havia ultrapassado a casa dos 10% em 2021 para a faixa atual de 4% ao ano.
Há um motivo claro para o BC não ter cedido à gritaria de Lula, seu partido e alguns de seus ministros: a autonomia operacional conquistada em 2021 com a entrada em vigor da lei que criou dispositivos de gestão para proteger a autarquia de influências políticas e manobras governamentais. A condição de BC independente permitiu a Roberto Campos Neto, seu presidente, agir de acordo com convicções técnicas, evitando que ocorresse o que seria nefasto: a ingerência do governo de plantão. A autonomia, de fato, trouxe frutos. Entre eles, está o legado de inovações na digitalização financeira, que inclui o sucesso do Pix e projetos em andamento como o Open Finance e a moeda digital Drex. O conjunto de avanços tecnológicos e a melhora institucional culminaram na premiação do BC brasileiro como o melhor banco central do mundo, em março último, pela publicação britânica Central Banking.
Campos Neto deixará o órgão no fim de dezembro, e entregará ao sucessor, que será nomeado por Lula, um cenário de juros reduzidos, inflação controlada e caminho aberto para o crescimento econômico, além dos notáveis avanços tecnológicos do sistema financeiro nacional. O mais cotado para substituí-lo é o economista Gabriel Galípolo, atual diretor de política monetária do BC. Próximo do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Galípolo é considerado discreto e moderado, um perfil que, nesses aspectos, assemelha-se ao de Campos Neto (embora tenha votado nessa última decisão do Copom pelo corte de 0,5).
O que surpreende na gestão bem-sucedida do chefe do BC é como lidou com o rosário de desafios que brotaram pelo caminho. A começar pelas críticas sem sentido feitas por integrantes do governo Lula, que o acusaram de estar a serviço do governo anterior — sendo que, não custa lembrar, a inflação controlada favoreceu diretamente o líder petista na eleição presidencial. Como se não bastasse, em 2024 Campos Neto deparou com um desafio de outra natureza: o aperto financeiro. Segundo ele, o orçamento para investimentos do Banco Central, que depende dos repasses federais, foi reduzido a um quinto do que era há cinco anos. Em evento recente realizado em São Paulo, Campos Neto expressou sua preocupação: “Chega uma hora em que a gente fala: como vamos conseguir fazer rodar o Pix?”.
O Banco Central tem uma verba anual de 4 bilhões de reais. Ela é definida no Orçamento da União, coordenado pelo Ministério do Planejamento, de Simone Tebet. Do dinheiro disponível, mais de 90% são direcionados para despesas obrigatórias, consumidas majoritariamente por salários e aposentadorias — que, ressalve-se, crescem ano a ano. Já o orçamento discricionário para o ano corrente foi definido em 326 milhões de reais, 5% menor que o valor realizado em 2023 e, segundo o BC, 66,6 milhões de reais abaixo do mínimo necessário para a manutenção adequada das operações. “É o que acontece com todo o Orçamento da União”, diz Eduardo Nogueira, analista do Instituto Fiscal Independente. “As despesas obrigatórias, puxadas pela Previdência, ocupam a maior parte do espaço e crescem muito mais do que o teto permitido, o que comprime as discricionárias e, em poucos anos, pode deixar um órgão sem recursos suficientes.”
É na cota das despesas discricionárias — isto é, as que podem ser manejadas — que ficam os outros custos do BC, que vão da conta de luz aos investimentos em tecnologia, como os feitos para a criação do Pix. “O sucesso do Pix foi tão estrondoso que os investimentos que ele demanda hoje são muito maiores que os traçados no início, mas o orçamento não cresce”, diz Fabiana Ladvocat Carvalho, vice-presidente da Associação Nacional dos Analistas do Banco Central do Brasil. O Pix Automático, que será equivalente ao débito automático, tinha o lançamento previsto para 2022, mas já foi jogado para o fim de 2024 por causa da falta de recursos, segundo a entidade.
É nesse contexto que cresce a expectativa em torno da PEC 65, a Proposta de Emenda Constitucional apresentada pelo Senado no ano passado que defende, agora, a independência financeira do Banco Central. “Só estamos fazendo uma coisa parecida com o resto do mundo”, afirmou Campos Neto, ativo entusiasta da iniciativa. “Depois da autonomia operacional, é um processo natural pensar na autonomia financeira do BC”, disse a VEJA o relator da matéria, o senador Plínio Valério (PSDB-AM), que promete entregar seu parecer até junho para discussão e votação ainda neste ano.
A PEC da Autonomia Financeira propõe transformar o BC, que hoje é uma autarquia vinculada ao governo federal, em uma empresa pública. Isso permitiria ao órgão controlar seu orçamento a partir das receitas que gera. Atualmente, essas receitas vão para o Tesouro Nacional e voltam, em parte, por meio do quinhão reservado ao BC no Orçamento geral da União. Segundo o ex-diretor do Banco Central Tony Volpon, a autarquia, ao contrário dos ministérios, possui fonte de recursos próprios e gera receitas financeiras contínuas por meio de sua carteira de títulos, que poderiam financiar as despesas operacionais e até os salários de funcionários. “Essa prática já é comum entre a maioria dos bancos centrais no mundo”, diz Volpon. “Não implica uma permissão para gastar sem critérios, mas, sim, para administrar as receitas de maneira mais eficiente e alinhada com suas necessidades.”
Como não poderia deixar de ser, a PEC não escapa das críticas costumeiras. “Ela tira o Executivo da jogada e dificulta a coordenação da política econômica da Fazenda com o BC”, diz Fábio Faiad, presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central. Sem a autonomia financeira, contudo, é questionável se a agenda de inovação conduzida até aqui por Campos Neto teria fôlego para seguir adiante. Em caso negativo, perderia toda a sociedade — basta observar o extraordinário sucesso do Pix para confirmar tal percepção. Nos últimos anos, o Banco Central do Brasil deu importantes passos em direção ao futuro. Não é hora de voltar para trás.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892