O ano de 2023 mal começou e a agricultura brasileira já se prepara para comemorar um grande marco: a colheita de mais de 300 milhões de toneladas de grãos. Trata-se de um feito notável sob todos os aspectos, considerando-se que o país cravou seus primeiros 100 milhões de toneladas em 2001, dobrou esse volume catorze anos depois, em 2015, e agora em pouco mais da metade do tempo acrescenta o novo recorde à sua história. É uma prova incontestável da pujança do setor agrícola, principalmente quando se leva em conta o complicado contexto econômico da última década e o crescimento pífio do produto interno bruto nacional no período. Tamanha potência será especialmente importante neste ano, em que o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva precisa provar ser capaz de ativar a economia brasileira. A expectativa é que, em 2023, o crescimento do PIB originado no campo seja o maior dos últimos oito anos, com uma expansão de 8%. No ano passado, o setor registrou retração de 1,6%, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre).
A notícia da supersafra é especialmente alvissareira quando se leva em conta que sem ela o primeiro ano do novo governo poderia ser marcado por uma recessão. Os setores da indústria e dos serviços já sinalizam pouca capacidade de tração, prejudicados pela perda do poder de consumo da população e pelos altos índices de endividamento. São raros os bancos e economistas que apostam em crescimento do PIB acima de 1% para este ano. “Se não fosse a agricultura, teríamos crescimento anual decepcionante. No primeiro trimestre, por exemplo, o protagonista já será o campo”, diz Silvia Matos, pesquisadora-sênior de economia aplicada do FGV-Ibre. A safra recorde é resultado de um aumento das plantações, mas também dos efeitos da meteorologia, com a ocorrência de chuvas benéficas ao cultivo e colheita, especialmente de soja e milho, que prometem ser cruciais nesse resultado positivo.
Em paralelo à produção excepcional, há também circunstâncias internacionais que favorecem o bom momento agrícola. A reabertura da China depois de sua agressiva política de controle da Covid-19 e o desequilíbrio da produção em nações relevantes do setor como Rússia e Ucrânia criaram um horizonte extremamente positivo para os grãos brasileiros no comércio mundial. “O setor agropecuário tem crescido sistematicamente nos últimos vinte anos, mesmo com crises internacionais e com recessão no Brasil, mostrando que é um caminho confiável. Em 2009, a estimativa da participação direta e indireta da agropecuária no PIB era de 23% e agora é próximo de 30%”, explica José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de política econômica de Fernando Henrique Cardoso e sócio-fundador da MB Associados.
Como o comércio global de commodities está sujeito a uma miríada de fatores, há obviamente uma longa jornada até a efetiva venda dos produtos — e sua transformação em riqueza para o país. Um grande enigma para quem acompanha o setor é o comportamento dos preços dos produtos. Estudos do Banco Mundial apontam para uma redução de 4,5% nos preços médios dos produtos agrícolas como uma espécie de acomodação frente às altas significativas vistas em 2022. É o caso da soja, o principal item da balança exportadora brasileira, que subiu 16,6% em 2022 e agora pode sofrer uma queda 4,4%. O milho, cujo valor cresceu 21,4%, pode apresentar um recuo de 7,9%. “O volume da produção está garantido, mas os preços ainda são uma incógnita”, diz Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura no primeiro governo Lula. Frente à queda das commodities, o crescimento do PIB agrário será ainda mais notável.
Em meio à performance excepcional do setor agrícola, seria de esperar que a atual administração buscasse pacificar o relacionamento com os produtores rurais, que em sua maioria apoiaram abertamente o ex-presidente Jair Bolsonaro. No entanto, não é isso o que tem acontecido. Durante a campanha, Lula criticou abertamente o agronegócio, vinculou de forma generalizada o setor ao desmatamento florestal e à ocupação predatória da Amazônia. E, uma vez iniciado o governo, são evidentes os sinais de que a agenda federal caminha em outra direção.
Logo na largada, o Ministério da Agricultura foi esvaziado com a recriação das pastas da Pesca e do Desenvolvimento Agrário. A medida desagradou profundamente às associações do setor que haviam solicitado à equipe de transição que o ministério fosse mantido integrado, em nome da eficiência na gestão, tanto das políticas públicas como de recursos humanos. Mesmo com o Ministério da Agricultura sob o comando do senador Carlos Fávaro (PSD-MT), nome com boa interlocução junto ao agronegócio, o desmembramento levou à transferência de diversas instituições estratégicas para a pasta do Desenvolvimento Agrário. Com isso órgãos importantes como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) acabaram sob controle de lideranças vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), inimigos figadais dos grandes produtores rurais. “A Conab é um instrumento de política agrícola, formação de estoques e referência para preços praticados. É também uma balizadora para estratégias de produção, com papel fundamental no abastecimento. Nada mais lógico que esteja no Ministério da Agricultura”, defende o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA).
Outra crítica do setor é que o Cadastro Ambiental Rural saiu do Ministério da Agricultura e foi para o do Meio Ambiente, gerando apreensão de que a pasta comandada por Marina Silva possa dificultar o acesso dos produtores ao programa de regularização ambiental. “Me parece que o agronegócio foi escolhido como o grande adversário do governo”, reclama o deputado Pedro Lupion (PP-PR), presidente recém-empossado da FPA. Em meio à mudança de gestão, houve ainda a eliminação do departamento de promoção ao agronegócio dentro do Itamaraty. “Isso coloca mais instâncias intermediárias para resolver problemas, dificultando a interlocução institucional”, declara o presidente de uma associação de exportadores que prefere não se identificar.
A seu favor, a gestão de Lula argumenta que, enquanto o agronegócio critica decisões do governo, há um forte esforço em curso para mudar a imagem do Brasil no exterior e favorecer as exportações em geral. Nos primeiros 45 dias de gestão, a China e a Indonésia habilitaram, respectivamente, 25 e onze frigoríficos brasileiros de carne bovina para a venda de produtos a seus mercados. O Brasil também dialoga com a Alemanha, a maior economia da União Europeia, e tenta, por meio de reuniões bilaterais com o país, destravar as resistências para a assinatura do acordo entre o bloco europeu e o Mercosul.
Em meio a esse complexo cenário, um novo elemento promete em breve se interpor entre o governo e produtores rurais. Trata-se da reforma tributária a ser conduzida com status de prioridade pelo Ministério da Fazenda, comandado por Fernando Haddad. Entre todos os setores produtivos, o agronegócio é visto pelo governo como o que pode apresentar maiores resistências ao projeto. Assim como acontece com os serviços, o segmento agrícola deve experimentar uma elevação na carga tributária, com a entrada em vigor de um imposto sobre valor agregado, o IVA. Atualmente, ambos os setores detêm alíquotas inferiores às da indústria e do setor financeiro, diferença que deve ser eliminada no novo sistema. Ou seja, desenha-se no horizonte mais um motivo de insatisfação e desavenças entre o governo e agricultores, independentemente de esses últimos ostentarem o título de salvadores da combalida economia brasileira.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829