Engenheiro de formação, o fluminense Tadeu Marroco, de 58 anos, trabalha há três décadas no mundo dos cigarros — sem nunca ter sido fumante. O executivo, que passou por diversas posições de liderança da companhia na América Latina, chegou ao board da British American Tobacco (BAT), dona da antiga Souza Cruz, em 2014. Em maio do ano passado, assumiu o posto de CEO global da maior produtora de cigarros no mundo. A gestão de uma empresa como a BAT tem peculiaridades. Trata-se de uma corporação que produz itens que comprovadamente fazem mal à saúde. Há um tempo, Marroco assumiu o desafio de convencer interlocutores de que o cigarro eletrônico agride menos seus usuários do que os cigarros tradicionais. Na entrevista a seguir, o executivo apresenta seus argumentos em defesa do produto, que teve sua comercialização e produção barradas no país pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e agora vê o debate no âmbito do Congresso Nacional. Ele considera que a legislação brasileira está atrasada em relação à de outros países e revela os planos da BAT para atuar em outras áreas de negócios. Confira os principais trechos:
Por que a BAT aposta no cigarro eletrônico, um produto que é proibido no Brasil? Sempre houve um desafio nesse ramo, que é reduzir o impacto de nosso produto na saúde pública. Claramente, o cigarro traz malefícios à saúde, mas hoje existem tecnologias para consumo da nicotina que têm um perfil de risco reduzido em relação ao cigarro convencional. A BAT abraçou essas categorias desde o início e começou a investir no segmento há mais de uma década. Agora somos uma empresa multicategoria. Temos, além do cigarro convencional, o cigarro eletrônico, conhecido como vape, o tabaco aquecido e o sachê de nicotina oral.
Mas o vape também não é nocivo à saúde? O vape está presente em oitenta mercados, inclusive naqueles conhecidos pela legislação antitabagista, como o Canadá, um país para o qual o Brasil sempre olhou como referência nos controles de tabagismo. Há quatro anos, os canadenses regulamentaram o produto e se juntaram a Reino Unido, Estados Unidos e países da América Latina, como recentemente o Chile, que autorizaram o uso em 2023. O Brasil está atrasado nessa discussão.
Por que a indústria aposta tanto nesse produto? Os estudos que temos — que não foram feitos pela indústria, e sim por instituições acadêmicas — nos dão elementos para afirmar que o cigarro eletrônico é menos prejudicial. Em setembro de 2022, o King’s College soltou uma compilação de 400 estudos analisando o impacto do vape em relação ao do cigarro convencional e chegou à conclusão de que ele é 95% menos prejudicial à saúde do que o produto tradicional. A grande diferença é que não há combustão do tabaco no cigarro eletrônico. Minha preocupação efetiva como brasileiro é saber se haverá essa regulação para que os 22 milhões de fumantes no Brasil tenham a opção de ter uma forma mais segura de fazer o consumo da nicotina, como existe em diversos outros mercados, ou se ficarão restritos ao consumo ilegal, como é hoje.
O cigarro eletrônico tem apelo tecnológico e é usado por jovens. Legalizar esse produto não poderia incentivar o uso maior por adolescentes? Para evitar isso, são necessárias regras muito claras. Os produtos à base de nicotina são para maiores de idade. Ao não regulamentar os cigarros eletrônicos, você permite a venda e o uso sem nenhum tipo de controle, sanitário ou toxicológico. Os vapes vendidos de forma irregular seduzem adolescentes por causa do sabor. Eles têm sabores de sobremesa, com níveis de nicotina e de açúcar que não têm controle. Atualmente, apesar de proibida a comercialização no Brasil, os cigarros eletrônicos estão em todos os lugares: baladas, bares, redes sociais e até em aplicativos de entregas. No fim das contas, essa proibição só priva os fumantes brasileiros de ter acesso a um produto regulamentado e com risco mais baixo.
“Os vapes vendidos de forma irregular seduzem os jovens por causa do sabor”
Não é exagero dizer que uma legislação diminuiria o uso por parte dos adolescentes? Existem várias formas de evitar o acesso de menores de idade aos vapes. A primeira delas é justamente restringir os sabores, porque eles são apelativos e chamativos. É claro que um sabor de chocolate, que é doce, chama a atenção do jovem. O segundo ponto é evitar que esse produto possa ser alterado, para que não se coloquem substâncias dentro do cigarro eletrônico que são ainda mais prejudiciais à saúde. Também deve haver restrição a como se vende o cigarro eletrônico, com pontos de venda específicos e controle de idade, como há para o produto convencional.
Como os vapes são vendidos em outros países? No Canadá, por exemplo, nós produzimos um aparelho que tem um chip e que conversa com o celular do usuário por meio do Bluetooth. Ele só desbloqueia o uso se for confirmado que o indivíduo é maior de idade. Hoje, 70% dos dispositivos que vendemos no Canadá têm essa funcionalidade.
A BAT vende cigarro com sabor? O vape convenceu mais da metade dos fumantes a deixar o cigarro convencional. Para isso, o sabor tem papel relevante. Nós temos o sabor de tabaco, que é o mesmo do cigarro, de mentol e de algumas frutas, que não têm caráter apelativo para os menores de idade.
Qual é o tamanho do mercado consumidor de cigarros eletrônicos no Brasil que poderia ser atingido se o produto fosse legalizado? O Brasil tem em torno de 2,9 milhões de usuários de vape, e o uso desses dispositivos cresceu 600% nos últimos seis anos, segundo um levantamento feito pelo instituto Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica). De acordo com a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, se o mercado fosse regulado, seria possível haver uma arrecadação de ao menos 3,4 bilhões de reais apenas em nível federal. Então, os únicos beneficiários da não regulamentação são aqueles que vendem os itens ilegalmente. Negligenciar o fato de que o cigarro eletrônico existe não resolve nada. A ilegalidade, assim como ocorre com o cigarro convencional, alimenta o crime organizado no Brasil.
A regulamentação não incentiva o consumo do cigarro eletrônico entre a população em geral? Na verdade, é o contrário. As experiências internacionais mostram que há como vender o cigarro eletrônico e diminuir o número de fumantes. O Reino Unido advoga o vape como uma alternativa aos fumantes. Segundo o King’s College, 9% da população britânica adulta usa os cigarros eletrônicos. Destes, 57% desistiram do cigarro convencional. A ONG ASH (Action on Smoking and Health), para controle do tabaco, confirma esses dados.
Ao mesmo tempo em que há estudos sobre a redução do risco dos cigarros eletrônicos, há relatos de mortes e problemas pulmonares ligados ao uso do produto. São justamente os produtos sem certificação que estão ligados a problemas pulmonares. A culpa, no entanto, recai sobre a indústria, que não produz nem comercializa o produto no Brasil. Nos Estados Unidos, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças identificaram que as mortes por problemas pulmonares decorrentes do uso de cigarros eletrônicos são associadas ao acetato de vitamina E, um diluente do THC, a substância ativa da maconha. Lá, há uma regulamentação clara quanto à comercialização do produto. Com essa regulamentação, o consumo da população adolescente caiu de 35% para 10%.
A Anvisa recentemente manteve a proibição dos cigarros eletrônicos no Brasil. Qual é a sua visão sobre a decisão? A decisão da agência vai na contramão do mundo, desconsiderando a percepção da sociedade e das diversas evidências internacionais que comprovam que os produtos alternativos de nicotina são fundamentais para a redução dos danos à saúde de adultos fumantes.
Quais são os planos da BAT para o Brasil se os cigarros eletrônicos continuarem proibidos? O Brasil sempre continuará relevante. Tanto pela história da empresa, que tem 120 anos de atuação no mercado brasileiro com a marca Souza Cruz, quanto pelo mercado consumidor. O que eu quero dizer é que a BAT está comprometida com o Brasil e vai continuar debatendo esse tema com a sociedade brasileira, com os consumidores e com o Congresso Nacional, que é a instância soberana para a elaboração de leis e políticas públicas no país.
“Nós definimos a meta de chegar a 50% das receitas fora da combustão até 2035”
Tramita no Senado um projeto de lei com regras para a comercialização dos vapes no Brasil. A indústria está de acordo com esse texto? Nós vemos o projeto como um passo positivo para o debate. O texto endereça preocupações trazidas pela comunidade científica mundial. Por exemplo, por se tratar de um produto eletrônico, prevê que as empresas recolham e destinem o produto de forma ambientalmente adequada, e essa é uma discussão que existe na Europa no momento.
A BAT atua em quais áreas de negócios? Aqui no Brasil, fizemos um investimento na Mais Mu, empresa de barras de proteína. Também há iniciativas em outras partes do mundo, como os shots na Austrália. Não são energy drinks, mas produtos que podem dar a sensação de relaxamento, de foco. São itens de estímulo ao bem-estar. Esse é um caminho para a BAT.
A Cannabis recreativa é um produto a ser desenvolvido e vendido pela BAT? A Cannabis não é foco da BAT no mundo, muito menos no Brasil. É um produto que requer mais conhecimento em primeiro lugar. Há novamente o problema da queima, e eu enxergo que o uso dessa substância também vai evoluir para fora da combustão. É prematuro fazer planos para a Cannabis na companhia. A BAT tem um investimento em uma fabricante canadense de Cannabis medicinal, a Organigram, mas numa área que faz diversos investimentos que vão além da nicotina.
A BAT não vai ser mais apenas uma empresa de cigarros? Nós definimos recentemente uma meta de chegar a 50% das receitas da empresa fora da combustão, ou seja, sem os cigarros, até 2035. Atualmente, temos 24 milhões de consumidores fora do cigarro tradicional. Pretendemos chegar a 50 milhões desses consumidores até 2030. Então, podemos imaginar a BAT, em vinte ou trinta anos, como uma empresa que vai estar mais focada na área de bem-estar e estímulo, na qual a nicotina é mais um componente ativo no portfólio da empresa.
Publicado em VEJA, junho de 2024, edição VEJA Negócios nº 3