Três anos depois de fechar suas fábricas, Ford retoma fôlego no Brasil
A montadora americana faz do centro de pesquisas instalado em Camaçari, na Bahia, um dos mais importantes do mundo
O insucesso é apenas uma oportunidade de recomeçar com mais inteligência. A máxima do engenheiro e empresário americano Henry Ford, fundador da montadora que leva seu nome, não poderia ser mais apropriada para traduzir a trajetória da empresa no Brasil. A Ford foi a primeira fabricante de automóveis a se instalar no país, em 1919. Em mais de um século de operações, liderou por diversas vezes o mercado nacional até ser sufocada, nos últimos anos, pela concorrência acirrada e o desaquecimento da economia. Em 2021, desistiu de vez, ao fechar todas as unidades fabris brasileiras. Isso, contudo, não significou o fim da histórica relação com o Brasil. A empresa não aperta mais parafusos por aqui — agora, o mercado local é abastecido por fábricas na Argentina e no Uruguai —, mas mantém em funcionamento no Brasil um de seus mais importantes centros de pesquisa e desenvolvimento no mundo. E ele não para de crescer.
Localizado em Camaçari, na Bahia, o centro conta hoje com 1 600 engenheiros e pesquisadores contratados. Em 2021, quando a Ford fechou as fábricas brasileiras, eram 700. Para ter ideia, três motores que a marca utiliza em seus carros mundo afora foram desenvolvidos no Brasil. A área de software também é cada vez mais forte: quase metade de tudo o que é pensado em termos de painéis e tecnologias de sistemas é concebida em solo brasileiro. “Queremos ser a primeira opção de desenvolvimento de tecnologias da Ford no mundo”, afirma Alex Machado, diretor de Desenvolvimento de Produtos da montadora na América do Sul. “E estamos conseguindo nos destacar.”
Além do núcleo de pesquisas, a empresa mantém em Tatuí, no interior de São Paulo, um centro de provas, que está em operação desde 1970 — foi o primeiro do Brasil. Atualmente, o espaço está em fase final de obras de infraestrutura para receber testes de carros autônomos, que serão vendidos em vários mercados. “A Ford virou uma grande importadora com área de inteligência”, diz o consultor independente Milad Neto. “O Brasil tem excelência em engenharia, somos muito criativos. Temos chance de nos tornar protagonistas no cenário de engenharia de mobilidade.”
A nova estratégia tem gerado resultados surpreendentes. A Ford deixou de fazer os carros pequenos de sua linha de até três anos atrás. Por isso, em volume de vendas, os números atuais são bem inferiores aos registrados em 2019 (veja o quadro), antes da pandemia de covid-19. Mas, em 2023, fechou com crescimento de 40% ante 2022 nas vendas no Brasil, agora já centradas em picapes, SUVs e comerciais leves importados, que recolocaram a empresa na rota do lucro.
O setor automotivo sempre foi alvo de obsessão do governo Lula. Assim que assumiu o terceiro mandato, o presidente anunciou um novo programa de barateamento de veículos para estimular as vendas no país. A iniciativa não vingou, gerando pouco resultado efetivo para o setor. Agora, o Senado aprovou o Programa Mover, que prevê benefícios fiscais às montadoras que investirem em tecnologias de baixa emissão de carbono. Em contrapartida, elas serão obrigadas a desenvolver pesquisas no setor, exatamente como a Ford faz.
Transformar o Brasil em um centro de referência tecnológica não é exclusividade da Ford. A franco-germânica Airbus, maior fabricante de aeronaves do mundo, está no país há 45 anos, com produção de helicópteros em Itajubá, no interior de Minas Gerais. Trata-se da única fábrica da empresa fora dos Estados Unidos e da Europa. A cidade abriga um centro de inovação que tem ganhado importância nos últimos anos. “A nossa engenharia nessa área é equivalente à americana e à europeia, não deixa nada a dever”, afirma Gilberto Peralta, presidente da Airbus no Brasil. “A empresa compra tecnologia desenvolvida aqui para implementar na cadeia de produção mundial.” As iniciativas de Airbus e Ford sinalizam um país possível, que precisa entrar de vez na corrida tecnológica global. Infelizmente, são exemplos ainda raros.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896