Uma ameaça ao dólar? Stablecoins ganham força e desafiam o mercado de câmbio
Atreladas a ativos como a divisa americana, os tokens já dominam o setor de criptomoedas no Brasil

Ainda que as criptomoedas continuem despertando dúvidas em relação à sua segurança, uma classe desses ativos digitais está em vias de ganhar a cena: as stablecoins. Lastreadas em ativos estáveis, como moedas fiduciárias ou ouro, elas são mais estáveis do que outros tokens. As que têm paridade com o dólar, em especial, têm virado uma alternativa mais eficiente ao mercado de câmbio. E isso tem atraído a atenção (e a preocupação) das autoridades reguladoras.
A expansão já faz esses ativos dominarem o mercado. Em 2023, a USDT, da Tether, principal stablecoin, havia representado cerca de 80% das transações com criptoativos declaradas à Receita Federal, de acordo com Bernardo Srur, presidente da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABcripto). O cenário se intensificou em 2024. Somente de janeiro a setembro, os brasileiros movimentaram 248 bilhões de reais em criptoativos — um aumento de 24% em relação ao mesmo período do ano anterior. “A USDT respondeu por 177,4 bilhões desse total, mantendo sua posição de liderança absoluta e movimentando mais que o dobro do bitcoin, que registrou 38,1 bilhões de reais no mesmo intervalo”, diz Srur. Criptomoedas atreladas ao dólar, como a USDT, representam a maior fatia, mas uma stablecoin lastreada em real, a BRZ, também teve movimentação relevante: somou 7 bilhões de reais no mesmo período.

“Essas moedas estão ganhando espaço como uma alternativa para reservas de valor que tradicionalmente seriam mantidas em dólar físico ou até mesmo em títulos do Tesouro americano”, diz Carlos Alberto Di Agustini, professor da Fundação Getulio Vargas. Há várias razões para esse sucesso, como a facilidade de acesso e a liquidez imediata. Elas não requerem a abertura de contas bancárias no exterior nem a necessidade de adquirir dólares em espécie, que têm custos de transação e custódia. Como são lastreadas em ativos, oferecem maior proteção. Mas há riscos. “Embora sejam projetadas para manter a paridade com o dólar (ou outro ativo), já houve casos de depeg, quando a stablecoin perdeu temporariamente sua vinculação. Isso pode acontecer devido a problemas nas reservas, desafios regulatórios ou falhas no mecanismo de estabilização”, afirma Agustini.
A confiabilidade depende de quem lança as moedas. Questionamentos sobre as reservas da Tether, por exemplo, geraram preocupações no passado. O maior senão ainda é a falta de uma regulação. E isso vale também para o Brasil, ainda que o debate por aqui esteja amadurecendo. “A gente está passando por uma reforma regulatória”, afirma Bárbara Espir, gerente no Brasil da Bitso, uma das líderes em serviços financeiros ligados ao criptoativo na América Latina. “Primeiro foi no sistema de câmbio em geral, com uma modernização nos últimos dois anos, e agora existe a consulta pública que vai permitir oficialmente o uso de stablecoins para remessas, como o câmbio oficial.”
Ela se refere à Consulta Pública 111/24, lançada pelo Banco Central para receber contribuições sobre a regulação das prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs) no mercado de câmbio, um desdobramento já previsto no marco legal das criptomoedas, de 2022. O setor esperava que a eventual taxação, especialmente por IOF, ocorresse após a equiparação ao câmbio. Mas a medida provisória enviada pelo governo ao Congresso no dia 11 de junho atropelou essa discussão.
Com ela, assim como todas as criptomoedas, as stablecoins passaram a ser tributadas pela norma, que contempla o lucro com ativos virtuais. Foi um chacoalhão no mercado. A ABcripto criticou a revogação da isenção para ganhos de capital com criptoativos de até 35 000 reais, uma das principais medidas a atingir o setor. “Elas são um retrocesso e vão afetar negativamente o mercado local, empurrando investidores para plataformas que não seguem as regras estabelecidas no Brasil”, disse a entidade em nota. “A stablecoin entra na regra de tributação geral de 17,5%, apurada trimestralmente. Assim como acontecerá com o bitcoin, se houve ganho líquido na operação com criptomoedas, você será sujeito a tributação independentemente do valor, resguardado o direito de compensar com eventuais perdas com esse tipo de ativo”, afirma Erik Oioli, sócio de mercado de capitais do escritório VBSO Advogados. Mas as stablecoins escaparam do IOF que atingiu o mercado de câmbio. Isso pode mudar no futuro, porém. A preocupação da autoridade monetária é evitar que elas sejam utilizadas como forma de enviar recursos para o exterior de maneira informal.

Competir com o mercado de câmbio não é a única utilização das stablecoins. A estabilidade do ativo favorece seu uso como meio de pagamento. “Há clientes que fazem pagamentos de exportações e importações com elas no comércio de soja e açúcar, por exemplo”, diz Espir, da Bitso. “Isso é 100% regular. Todos os impostos incidentes sobre essas operações são pagos. Por isso defendemos tanto as stablecoins, que são uma infraestrutura para qualquer tipo de operação internacional.”
A capitalização de mercado global das stablecoins já ultrapassou 200 bilhões de dólares, impulsionada por uma adoção crescente em remessas, pagamentos internacionais e proteção contra a desvalorização de moedas locais, segundo Charles Aboulafia, presidente da Cainvest, instituição de serviços bancários em Cayman. Países com economia instável estão adotando stablecoins como alternativa mais eficiente ao sistema bancário, uma vez que permitem transferências rápidas (em segundos, em vez de dias como no sistema Swift) e com menor custo. “A superioridade tecnológica impulsiona a demanda por essas moedas digitais”, afirma.
No Brasil, espera-se que a regulação venha até o início do próximo ano. A consulta do Banco Central recebeu muitas contribuições, o que traduz a grande expectativa. A mudança prevista que mais tem mobilizado o setor é a obrigação de que os ativos sejam centralizados nas exchanges, e não nas carteiras dos próprios clientes. A ideia é restringir a custódia dos ativos em carteira privada, mas isso vai contra a própria concepção dos criptoativos, criticam os participantes do mercado em geral.
Além disso, há dificuldades técnicas para controlar as carteiras, que por definição são descentralizadas. Uma alternativa seria seguir a regulação europeia, mais avançada, que permite esse rastreamento. “É impossível colocar uma trava nas carteiras. Mas já existem ferramentas fenomenais de monitoramento em tempo real. Com elas, é possível fazer um bloqueio das operações, rastrear todo o caminho do dinheiro. A gente espera que o regulador vá para essa linha”, afirma Espir. “Esse é o ponto mais polêmico da consulta pública”, diz Oioli. Para ele, o Banco Central quer proibir a autocustódia para ter controle sobre a saída e a entrada de divisas, o que faz todo o sentido. “É difícil o BC ceder nessa questão, ainda que esteja sensível aos argumentos do mercado.”

A expectativa não ocorre apenas no Brasil. Essas moedas virtuais podem ser em breve reguladas nos Estados Unidos, o que abrirá o caminho para fundos de pensão, fundos de investimento e seguradoras aplicarem também nesse tipo de ativo. Por isso, bancos como JPMorgan Chase, Bank of America, Citigroup, Wells Fargo, Santander e Société Générale estão avaliando lançar suas próprias stablecoins.
A discussão está no Congresso americano. O chamado Genius Act (Guiding and Establishing National Innovation for U.S. Stablecoins Act), depois de passar no Senado, foi aprovado na Câmara no último dia 17, impulsionado pelo apoio que o governo Trump está dando ao setor. Se essa oficialização se concretizar, o que hoje parece provável, as stablecoins mudarão de status e poderão atingir um montante da ordem de 2 trilhões de dólares até 2028, segundo o Tesouro americano, praticamente decuplicando o volume atual. Seria uma mudança e tanto, além de uma ironia, já que os tecnolibertários inventaram os ativos digitais pensando exatamente em desafiar o sistema financeiro internacional.
Publicado em VEJA, julho de 2025, edição VEJA Negócios nº 16