Quer saber se tem queda de cabelo excessiva? Desde junho, o aplicativo chinês Alipay, do grupo Alibaba, oferece uma função com inteligência artificial para analisar fotos da cabeça do usuário e chegar a um diagnóstico capilar. Esse é só um entre mais de 100 serviços contidos na ferramenta, como pagamentos, transferências, empréstimos, compras, agendamento de consultas médicas e compensação de emissões de carbono. O menu gigantesco faz do superaplicativo Alipay o maior e mais bem-sucedido do mundo, com 660 milhões de usuários ativos na China. Cerca de 250 milhões de pessoas abrem o app do bilionário chinês Jack Ma todos os dias, e a sessão média de uso dura quatro minutos. Isso significa que o aplicativo consegue muitos dados e tempo de atenção, ambos sinônimos de dinheiro na era digital, além de faturar diretamente com vendas on-line próprias ou de terceiros. Significa também que empresas do mundo inteiro gostariam de chegar a essa fórmula.
Não faltam tentativas. O sul-africano Elon Musk, no alto da lista dos maiores bilionários do mundo, já manifestou a vontade de transformar suas propriedades digitais em superapps. O argentino Mercado Livre, o colombiano Rappi, o britânico Revolut e o indiano Paytm são exemplos de aplicativos que começaram especializados e passaram a incorporar novas funções, no esforço de participar da vida do usuário em mais momentos, por mais tempo, ingerindo mais dados. No Brasil, empresas como Estapar, Banco Inter e VR caminham nessa direção.
A estratégia já ocupa os sonhos de empreendedores e investidores há alguns anos. Mas, diferentemente de tendências que perdem o fôlego, essa ganha cada vez mais impulso, por fatores como a concentração de funções no celular, a exaustão com o excesso de apps no aparelho, a digitalização do dinheiro e o efeito de rede (usuários atraem mais usuários). A Visa estima que o mercado global de superapps vai crescer 27% ao ano e passar de 420 bilhões de dólares até 2030 — e esse é um dos cálculos mais modestos entre experts. “Os superapps estão ganhando no momento”, diz Tigran Egiazarov, diretor sênior da consultoria Gartner. Ele apresenta como exemplo a movimentação dos bancos. “Agilidade é crucial como oxigênio para as instituições financeiras competitivas. Elas adotam superapps para ter inovação mais rápida e acelerar o lançamento de miniapps e novas funções, sem depender de atualizações nas app stores.”
Essa abordagem também permite que o cliente tenha uma experiência personalizada, porque ele pode descobrir, ativar e desativar miniapps dentro do sistema. O sucesso nesse empreendimento pode levar qualquer organização a um tipo de êxtase corporativo, em que é possível escolher fontes de receita — com vendas diretas, taxas de acesso, publicidade, bonificações, assinaturas, consultoria e o que mais a criatividade financeira conceber.
Uma das empresas que entraram mais recentemente na corrida é a VR, e com uma estratégia peculiar. A maioria dos superapps se desenvolve agregando mais serviços em torno de um tema — digamos, tudo que se relaciona ao carro (estacionamento, pedágio, IPVA) ou a dinheiro (investimentos, empréstimos, organização financeira). A VR, uma potência em seu segmento, com faturamento de 11,8 bilhões de reais (31% de crescimento em relação a 2022), segue outro rumo, mais desafiador, que até hoje só funcionou de forma inquestionável na China. A empresa quer agregar serviços de todos os tipos, pensando em tudo que o usuário (que a empresa chama de “trabalhador”) faz regularmente, mesmo que essas atividades nada tenham a ver com o vale-refeição e o vale-alimentação, os serviços que tornaram a VR famosa. Entram aí promoções, descontos e cashback em quaisquer tipos de compras (roupas, acessórios, produtos de beleza), pedidos de empréstimos, contratação de serviços variados com terceiros, como banho e tosa de bichos de estimação, registro de ponto no trabalho e verificação de banco de horas (a ferramenta também serve para os empregadores fazerem a gestão de benefícios). A variedade é possível porque a VR se apresenta como um ecossistema, capaz de embutir aplicativos criados externamente, por parceiros comerciais. Na visão da consultoria Forrester, essa capacidade é a verdadeira característica definidora dos superapps.
O movimento de expansão para serviços não relacionados a alimentação e benefícios trabalhistas marca um novo capítulo na história da empresa. A VR ainda pode crescer em seu segmento de origem, já que presta serviços a 110 000 empregadores (4% do total no país) e 4,7 milhões de empregados registrados (10% do total). “Mas não vejo aí uma escolha entre duas opções excludentes”, afirma a nova presidente, Simone Marques, que assumiu o cargo na VR em outubro. “Conseguimos uma base de dados enorme, temos hoje uma leitura muito melhor dos hábitos do trabalhador e estamos usando esse conhecimento para avançar em todos os serviços.”
A base de dados a que Simone se refere contém mais de 26 milhões de registros de compras, o que gera compreensão profunda do comportamento de consumo do brasileiro. Diego Senise, sócio-diretor da consultoria Ilumeo, já prestou serviços à companhia e considera o caso bem singular: “A VR tem três fontes de informação valiosíssimas — os empregadores, os funcionários e os comerciantes — e vem fazendo uma boa triangulação dessas fontes para gerar mais negócios”. A VR apresenta ao usuário incentivos variados na aquisição de produtos e contratação de serviços e recebe bonificações dos parceiros comerciais participantes do sistema, que aumentam suas vendas. A roda gira e alimenta mais rapidamente a base de dados, que inclui análise por inteligência artificial e oferece insights mais precisos a cada dia. O usuário costuma abrir o superapp pelo menos quinze vezes por mês. “O setor em que estamos gera uso muito frequente, o que proporciona mais negócios. Com esse volume, o mercado passa a nos ver como distribuidores de serviços”, diz Renato Teixeira, diretor-executivo na VR.
Muitos pontos, de fato, parecem contar a favor da empresa — mas não eliminam as dificuldades para a criação de superapps, que vêm sendo percebidas em vários países. Os chineses, que se tornaram referências digitais nos últimos anos, abraçaram esse tipo de comodidade por algumas características bem específicas de seu mercado: o alto grau de confiança nas empresas criadoras de superapps (maior que a usualmente encontrada no Brasil e no Ocidente em geral, em relação a grandes empresas); a ausência, quando essas ferramentas surgiram, de meios de pagamento digitais desenvolvidos; e poucos concorrentes no setor de pagamentos. As condições são bem diferentes no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa. Além disso, persiste o desafio tecnológico de agradar ao usuário com uma ferramenta estável, personalizável, fácil de entender e que permita uma transição suave entre diferentes funções e fornecedores. Os envolvidos só precisam conseguir fazer tudo isso — o que os chineses fizeram e o mundo quer fazer também.
Publicado em VEJA, outubro de 2024, edição VEJA Negócios nº 7