Victoria’s Secret volta aos holofotes com pouca roupa e muita sensualidade
Ícone da indústria americana de lingeries, a empresa retoma seu protagonismo depois de uma crise de imagem

O Empire State estava iluminado de rosa. Também os telões da Times Square. Em vários pontos de Manhattan, bares e restaurantes abarrotados de mulheres tinham as paredes enfeitadas, e estandes na mesma cor distribuíam sacolas de brindes ostentando o icônico lacinho enquanto as televisões aguardavam o início do show. Aquela terça-feira, 15 de outubro, veria a volta de um evento que deixou um marco na cultura, no entretenimento e na moda dos anos 2000: o Victoria’s Secret Fashion Show. Pela primeira vez em seis anos, o gigante da lingerie realizou seu espetáculo, outrora anual, de exibição de corpos e roupas íntimas sensuais, com um renovado casting de modelos que agora agrega às tradicionais beldades voluptuosas de traços europeus um grupo diverso de manequins, de transgêneros às mais variadas etnias, todas com luxuosas asas nas costas.
Realizado em um galpão na zona portuária do Brooklyn, em Nova York, o desfile de supermodelos tomou a passarela usando os conjuntos característicos da marca em renda e tule. No palco, as artistas Lisa (da sensação do k-pop Blackpink) e Cher encerraram a noite com hinos de empoderamento feminino como Believe e Strong Enough. “O show nos trouxe para o radar de uma nova geração de mulheres que está nos dizendo ‘queremos cabelos volumosos, mais glamour, mais brilho, mais… queremos tudo’ ”, disse a CEO Hillary Super, que assumiu o comando da empresa em agosto. “Fico empolgada, porque sabemos como fazer isso.”
E sabem mesmo. A empresa foi fundada em 1977, na Califórnia, por um casal de São Francisco que fizera uma pequena fortuna vendendo vibradores pelo correio. No auge da revolução sexual daquela década, Roy e Gaye Raymond perceberam que o varejo americano ainda era muito puritano. Havia uma enorme demanda reprimida de consumidores que não queriam visitar sex shops nas áreas mais sórdidas das cidades para comprar itens e roupas sensuais. Com o sucesso do negócio de massageadores, investiram na criação de um catálogo de vendas de lingeries luxuosas para mulheres que estavam ganhando o mercado de trabalho e a independência sobre o próprio corpo. Os livretos traziam textos assinados pela personagem fictícia Victoria, uma referência ao refinamento da era vitoriana na Inglaterra, e as fotos eram feitas em quartos com a decoração correspondente, repletos de madeira escura, tapetes orientais e cortinas de seda.

Nas décadas seguintes, já sob a direção do mago do varejo Les Wexner, a VS refletiu — e liderou — mudanças de tom e de sensibilidade na sociedade americana em relação à sensualidade chique com tanta competência que dominou o mercado de lingeries e camisolas a ponto de bater mais de 7 bilhões de dólares em receitas (veja o quadro). “A Victoria’s Secret transformou um negócio de reposição — você comprava calcinhas e sutiãs novos quando os seus ficavam puídos — em uma fábrica de aspiração e luxo, que é a indústria da moda”, diz Lauren Sherman, autora do livro Selling Sexy: Victoria’s Secret and the Unraveling of an American Icon (Vendendo sensualidade: a Victoria’s Secret e a debulhação de um ícone americano, numa tradução livre, sem previsão de publicação no Brasil). “Em quarenta anos, ninguém conseguiu fazer igual.”
Por que, então, a Victoria’s Secret suspendeu, depois do show de 2018, um dos maiores marcos culturais da indústria fashion americana? Ironicamente, a empresa se viu mais uma vez no centro de uma revolução cultural em curso na sociedade americana. Dessa vez, porém, no lado errado da história. Primeiro, seu diretor de marketing, o todo-poderoso Ed Razek, que alçou ao estrelato as brasileiras Gisele Bündchen e Alessandra Ambrosio, provocou indignação nas redes sociais quando disse em uma entrevista à Vogue que manequins plus-size e transgêneros não se encaixavam na ideia de “fantasia” da marca. Pouco depois, modelos e funcionárias da empresa vieram a público com denúncias de abuso sexual. Era o começo do movimento #MeToo, e a empresa se tornou um símbolo de toda uma cultura de objetificação e exploração do corpo feminino. E ficou pior. O financista Jeffrey Epstein, preso por comandar uma vasta rede de prostituição de menores de idade, era amicíssimo do principal acionista da VS, Les Wexner. Já havia anos que circulavam rumores de que Epstein se passava por recrutador de modelos da VS para ludibriar beldades, e a revelação de crimes ainda mais graves — e agora comprovados — foi devastadora para os negócios. O show, que já vinha perdendo audiência na televisão ano a ano, não tinha mais como continuar.

Mas se esconder não era o bastante. O grupo de investidores ativistas Barington Capital exigiu a venda da marca. As consumidoras migraram para peças mais confortáveis, como sutiãs esportivos ou de algodão. Nem mesmo o fim do icônico catálogo impresso salvou as finanças: em 2019, a empresa amargou prejuízo operacional de 892 milhões de dólares. Wexner foi convencido a ceder e encontrou um comprador, mas veio a pandemia, o fechamento de todas as mais de 1 000 lojas por tempo indeterminado, e a transação fracassou. Amargurado, Wexner anunciou sua aposentadoria e, em 2021, a Victoria’s Secret finalmente se separou da marca mãe L Brands (que também contava com lojas de departamentos e de cama, mesa e banho), tornando-se uma empresa independente. Sob nova direção, tentou se reinventar. Contratou modelos diversos, reformou lojas e expandiu operações internacionais. Lançou um marketplace dentro de seu site para pequenas marcas fundadas por mulheres. A pandemia até ajudou: em 2021, recuperou 63% dos lucros de 2015, seu ano de ouro. Mas a retomada foi breve. No primeiro semestre de 2023, as vendas caíram 6%, para 2,8 bilhões de dólares, com lucro operacional 72% menor. As ações derreteram 47% no ano passado.
A concorrência também mudou. De um lado, gigantes como Walmart oferecem preços mais baixos. De outro, marcas descoladas como a Skims, de Kim Kardashian, e a Savage x Fenty, de Rihanna, roubam o público jovem com um discurso de diversidade que soa muito mais autêntico do que a conversão forçada da Victoria’s Secret e uma fluência na linguagem das redes sociais que a VS jamais conseguiu dominar. Ainda assim, os números mostram que a empresa resiste: ela detém 19% do mercado americano de lingerie, mais que o dobro da concorrente mais próxima, e mantém um faturamento anual de 6 bilhões de dólares. Simeon Siegel, analista sênior da BMO Capital Markets, acredita que a marca é mais resiliente e popular do que as críticas na imprensa e no TikTok sugerem. “Quando a maioria das empresas vê suas marcas caírem em desgraça, as vendas colapsam, mas na Victoria’s Secret a única coisa que caiu foram suas margens de lucro”, diz. “A percepção sobre ela é muito pior do que seus relatórios financeiros.”

A volta do Fashion Show, com a presença de antigas Angels (o nome, aliás, foi aposentado), e toda uma diversidade de modelos, é vista pelo mercado como uma tentativa — cara, a um custo de 20 milhões de dólares — de mudar de assunto mais do que de impactar as vendas. Nessa frente, há um esforço para diversificar o portfólio, com o retorno de biquínis e maiôs ao mercado e com o lançamento recente da VSX, de roupas esportivas. O terceiro trimestre trouxe crescimento acima do esperado, e as ações estão em viés de alta. É que, para o mercado, nada mais sexy do que uma empresa que sabe se reinventar, de novo e de novo.
Publicado em VEJA, dezembro de 2024, edição VEJA Negócios nº 9