O ingresso no ensino médio é um delicado rito de passagem na vida escolar, um salto para um mundo em que o cardápio de matérias se abre e a caminhada para a universidade exige empenho máximo. Quando aportou no Brasil nos longínquos anos de 1950, o Prêmio Nobel de Física Richard Feynman já registrava o seu espanto com a quantidade colossal de conteúdo que era apresentada aos alunos nestas praias: poucas vezes havia visto algo parecido. Por outro lado, observou o Nobel, os estudantes eram afeitos à decoreba e muitos boiavam em conceitos básicos. Pois a situação só se agravou, à medida que volumosos tópicos foram sendo somados à cartilha, fenômeno alimentado por uma tradição enciclopédica que já não pertence a estes tempos digitais. Armazenar tanto conhecimento na cabeça, afinal, perdeu o valor diante da possibilidade de obter a um clique um infinito leque de informações. Hoje, o que conta mesmo é saber juntar as peças, afiar o raciocínio lógico e desenvolver o ímpeto inovador. Escolas mundo afora vêm há décadas se adaptando a tais demandas, lição que o Brasil começa agora a absorver.
A mudança, que vinha sendo debatida fazia duas décadas, será aplicada gradativamente ao longo dos próximos três anos e já dá a partida nesta volta às aulas, valendo para os estudantes do 1º ano do ensino médio. Vai atingir de saída 2,5 milhões de adolescentes, que estão, naturalmente, cheios de dúvidas e aflições, assim como seus pais. Mas é boa notícia. O novo ensino médio, como ocorre na maioria dos países da OCDE (organização que reúne os mais ricos), entre eles os Estados Unidos e a tão elogiada Finlândia, será mais flexível, dando ao jovem o poder de escolha sobre parte de sua jornada acadêmica. A ideia essencial é que cada um tem talentos e interesses distintos, portanto pode mergulhar nas áreas que lhe despertam a curiosidade e que pretende abraçar no futuro. “A realidade do século XXI exige que os jovens estejam preparados para a quarta revolução industrial, tendo elevado pensamento crítico, daí a necessidade de uma escola menos engessada”, enfatiza Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV-RJ.
Nessa escola modificada, as únicas disciplinas que seguirão iguais para todos durante o ensino médio inteiro são matemática e português. De resto, os estudantes pinçarão, entre cinco áreas de conhecimento, uma que queira trilhar com mais profundidade, seja no universo das ciências da natureza, seja se direcionando para uma formação técnica (veja o quadro acima). Para pais que podem estar se perguntando neste momento se o filho que tem predileção pelo campo das humanas não aprenderá mais física, por exemplo, a resposta é: a disciplina, bem como todas as previstas na Base Nacional Comum Curricular do Ministério da Educação, continua na grade — o que varia é a intensidade com que serão ensinadas a cada jovem. Na prática, 40% da carga horária, ampliada de uma média de quatro para cinco horas diárias, será reservada a um mundo inesgotável de disciplinas eletivas, que dão uma chacoalhada na vida escolar como a conhecemos.
As escolas, públicas e particulares, passaram os últimos três anos se dedicando à reforma, que faz entrar em cena matérias como empreendedorismo, matemática financeira, oratória, contação de histórias, fotografia, mídia, culinária, e por aí vai. “Não se trata de exigir que o aluno faça uma escolha profissional precoce, mas sim de lhe oferecer opções que dialoguem com seus reais interesses”, pontua Wilton Ormundo, diretor do colégio Móbile, em São Paulo, que preparou um menu com mais de vinte dessas eletivas. Prestes a estrear no ensino médio, Bruno Pozzobon, 15 anos, nutre saudáveis dúvidas sobre qual carreira seguir, mas na hora de marcar o xis em uma das cinco áreas, não pestanejou — cravou matemática. “Sempre gostei dos números e estou aliviado de não precisar estudar tanto as matérias com as quais tenho menos afinidade”, diz o adolescente, que mira as eletivas “investigações em física” e “programação de computadores”.
Para facilitar a transição e suavizar as angústias diante da novidade, as escolas estão implantando a disciplina “projeto de vida”, em que os alunos são instados a pensar sobre seus objetivos mais adiante com a ajuda de um orientador. Não foi fácil para Gabriela Pedrozo, 15 anos, assinalar sua opção. Ela passou noites insones pensando, até que se decidiu por ciências da natureza. “Fiquei nervosa com a ideia de não gostar das matérias e passar o ano arrependida.” Aí conversou com a família. “Disse a ela o básico: ‘Não tem certo ou errado, o importante é fazer bem, e de preferência com alegria, o que escolher’”, conta a mãe, a médica Tatiana Pedrozo, 46 anos. Se mudar de ideia no meio da jornada, ela e os outros têm a chance de trocar e lançar-se em nova trilha.
Uma transformação dessa envergadura exige treinamento dos professores e não ocorre sem tropeços. Quem se adiantou e já renovou o ensino médio avalia que a reviravolta compensa sob vários prismas. “É natural que haja um receio inicial, mas a nossa experiência mostra uma aprovação maciça do novo sistema”, diz Marcos Raggazzi, diretor-executivo do colégio Bernoulli, com unidades em Salvador e Belo Horizonte, que implantou o modelo há três anos.
Os colégios ainda convivem com um ponto de interrogação dos mais decisivos que paira no ar: como o Enem, hoje uma extensa prova que cobra uma vastíssima gama de matérias, se adaptará aos novos ventos? O que se sabe é que a versão reformada da prova entra em vigor em 2024, já foi desenhada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e aguarda a homologação de um grupo de trabalho sob a coordenação do MEC. Pela proposta encaminhada, o exame terá uma primeira etapa de múltipla escolha, dedicada à parte do currículo igual para todos, mais a redação, e uma segunda com questões dissertativas divididas por quatro áreas que espelham a lógica dos cursos superiores — cada aluno fará apenas a que se encaixar em sua escolha. “Queremos que o novo Enem seja menos conteudista e sinalize para as competências do século XXI”, explica Maria Helena Castro, presidente do CNE. Ao aderir ao conceito moderno de que educação não é penas estocar conhecimento, mas saber o que fazer com ele, o Brasil vira uma página mais do que necessária rumo ao futuro.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774