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A falta de médicos leva o MEC a permitir a antecipação do diploma

Por causa de hospitais superlotados, a ação lança recém-formados, de paraquedas, no centro da pandemia

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 4 jun 2024, 14h12 - Publicado em 19 jun 2020, 06h00
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  • Quando ingressou no curso de medicina da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), há cinco anos, Nadine Ramos, agora com 24, estava preparada para seguir o traçado normal do aprendizado: cinco anos de aulas e dois de residência antes de, enfim, ser declarada apta a se virar sozinha como médica. A pandemia acelerou a jornada. No fim de abril, com três meses de antecedência, Nadine recebeu seu diploma e entrou na, como ela mesma descreve, “zona de guerra”. “No dia seguinte à colação de grau, estávamos todos no hospital de campanha, substituindo médicos experientes que haviam sido contaminados”, contou ela a VEJA. Nadine está entre os 5 315 estudantes de medicina que se formaram antes da hora para atuar na linha de frente do combate ao novo coronavírus — um jovem pelotão que cresce se somados os 1 182 enfermeiros que passaram pelo mesmo processo só na rede federal. A maioria receberia o diploma em julho, mas os estudantes foram autorizados pelo Ministério da Educação a encerrar o curso mais cedo e a dispensar a residência por meio da publicação de uma medida provisória que estende a antecipação ao aluno que tiver completado 75% da carga horária prevista.

    Com bem mais teoria do que prática no currículo, o início da carreira para esses recém-formados tem sido equivalente a uma queda livre na realidade crua de uma doença ainda enigmática. No centro de terapia intensiva do Hospital Unimed-Rio da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, dois ex-alunos da Unigranrio, Marcelo Cruz, de 27 anos, e Maurício Curvusier, de 23, atuam como plantonistas e, embora já tivessem estagiado na mesma unidade, estão tendo de se adaptar a duras penas a um novo e trágico cenário. “A faculdade não nos prepara para perder pacientes em uma batalha como esta”, relata Cruz. A dupla, entretanto, tem o privilégio de trabalhar sob o olhar atento de uma equipe experiente. “Sabemos que é uma prova de fogo para eles, mas precisamos da mão de obra”, justifica Luiz Fernando Simvoulidis, chefe do CTI. De qualquer forma, diz, mesmo que já tivessem prática, estariam deparando com um novo perfil de paciente naquela ala. “Antes, a maioria era de idosos e havia espaço para todos. Agora, frequentemente há superlotação de doentes de várias faixas etárias.”

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    INSEGURANÇA - Rebecca: quando não sabe o que receitar, pede “um minutinho” e vai em busca de ajuda (Fabio Motta/VEJA)

    As próprias características da Covid-19 tornam ainda mais difícil o trabalho dos médicos. “As mudanças de estado de saúde são muito abruptas e os pacientes requerem atenção constante”, explica Flávio Sá, do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj). Tanto no Rio quanto em Manaus as associações médicas investem na criação de uma rede de contatos para compartilhamento de informações em tempo real sobre a situação dos pacientes e novos protocolos, tratamentos e descobertas. Seja por intermédio dos conselhos, seja pelas unidades, essas redes se transformaram num sistema de apoio aos mais inexperientes. Em Manaus, durante pelo menos duas semanas (o tempo necessário para que médicos infectados pudessem se tratar e voltar ao trabalho nos hospitais de campanha), Nadine e os colegas receberam orientações por teleconferência.

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    Formada há um ano, a médica cearense Rebecca Barros, de 26 anos, alterou drasticamente os planos de estudar violino e se preparar para a residência em pediatria enquanto cumpria plantões em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Fortaleza. Sua rotina agora é atender pacientes com Covid-19 e encontrar quem esclareça suas muitas dúvidas no caminho. “O paciente pergunta: ‘E agora, doutora?’. A vontade é responder: ‘Não sei’. A gente pede ‘só um minutinho’ e corre atrás de quem sabe mais, embora todo mundo esteja um pouco no escuro.” Até as regras variam. “Na primeira semana, havia um protocolo, mas só Deus sabe em qual versão ele está agora”, conta Rebecca. Muitas vezes, ela recorre a ex-professores para decidir o que fazer, recurso utilizado também pela ex-colega de classe Gabriela Melo, de 23 anos, que já enfrentou a tarefa tão dolorosa quanto corriqueira que se impõe aos médicos da linha de frente em regiões onde falta o básico: escolher, entre dois pacientes em estado grave, quem ficará com o indispensável ventilador. “Eu me sinto fazendo de conta que sou Deus”, lamenta Gabriela.

    A antecipação de formaturas não foi bem acolhida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) nem pela Associação Médica Brasileira (AMB), por significar uma perda para os alunos “em conteúdo e vivência”. As universidades também relutaram, mas, diante das circunstâncias, algumas das maiores, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acabaram cedendo, e a medida se estendeu a todos os estados. “Esse tipo de situação só pode acontecer em última instância. Na faculdade, você faz a autoescola da medicina. Na residência é que se pega a prática, o olho clínico. Mas claro que é melhor um recém-formado do que nada”, diz o oncologista Paulo Hoff, um dos médicos mais gabaritados do país. Médicos não faltam no Brasil: são cerca de 500 000, com acréscimo de 30 000 que se formam todo ano. O problema é a distribuição geográfica desse contingente. São Paulo concentra 28%, enquanto o Maranhão tem 0,8%. Mudar esse estado de coisas, quem sabe oferecendo cursos de residência atrativos em áreas carentes, é mais uma reforma urgente para o Brasil pós-pandemia. Enquanto isso, médicos inexperientes vão aprendendo na marra a salvar vidas em pleno drama coletivo.

    Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692

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