Ao persistente toque do despertador anunciando a hora de levantar-se para ir à escola, segue-se uma ladainha matutina que só muda de endereço: ninguém quer acordar. Uma vez feito o sacrifício, já cara a cara com o professor, um de cada cinco alunos se deixa embalar e desmaia na carteira, segundo mostra uma pesquisa da National Sleep Foundation, dos Estados Unidos, sobre o nível de atenção da criançada nas primeiras horas do dia. Os frequentes sinais de cansaço, mais agudos ainda entre os adolescentes, motivaram a Academia Americana de Pediatria a publicar um documento que soou como hora do recreio para estudantes habituados à campainha estridente no pátio às 7 e pouco da manhã: havia ali a recomendação de que as aulas começassem mais tarde. A enfática mensagem deixou a bolha científica e acaba de ser abraçada pelo Estado da Califórnia, o primeiro a sacudir a legislação para empurrar o início do turno escolar para até as 8h30.
A exaustão da garotada faz pensar em uma saída que a princípio parece bem mais simples: ir para a cama cedo, de modo a estar preparado para o que der e vier ao raiar do sol. Mas essa é uma alternativa pouco viável, garantem os especialistas — sobretudo na faixa etária a partir dos 13, 14 anos, quando um turbilhão de mudanças fisiológicas caminha em marcha acelerada e o adolescente passa a sentir sono mais tarde. Um dos motores dessa chacoalhada no relógio biológico tem a ver justamente com o fato de o corpo adiar a liberação do hormônio melatonina e o processo de queda da temperatura corporal — ambos responsáveis pela sensação de sonolência. “Por esses fatores, o adolescente passa a dormir até duas horas mais tarde do que costumava”, explica a neurologista Andrea Bacelar, da Associação Brasileira do Sono (ABS). Para completar as oito horas de descanso recomendadas, portanto, a turma precisa dar uma esticadinha pela manhã.
Esse conjunto de estudos começa a ecoar em outras partes, inclusive no Brasil — e vem colhendo bons resultados entre os estudantes. Escolas como Concept e Avenues, de São Paulo, estabeleceram o início do batente às 8 horas. Em Brasília, o Colégio Seriös decidiu adotar o horário mais dilatado em 2018, iniciando as aulas também às 8 horas. “Percebemos que os alunos chegam agora com maior capacidade de concentração”, observa o diretor pedagógico Nei Vieira. E isso tem se refletido no boletim: as médias subiram 5%. Os pais celebram por outras razões. “Meus filhos estão visivelmente mais dispostos e podem tomar um bom café da manhã”, diz a pedagoga Luciana Freitas, ao lado dos filhos Gustavo, 11 anos, e Felipe, 13.
A percepção de que o adolescente dorme aquém do necessário para prover combustível à ebulição em andamento em seu corpo motivou a ABS a apresentar à Comissão de Educação da Câmara dos Deputados um projeto de lei semelhante ao aprovado na Califórnia. Texto de mesma natureza, de autoria do deputado estadual Renan Ferreirinha (PSB), tramita na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Para sustentar a propriedade do pleito, um levantamento da ABS dá a dimensão do cansaço geral nessa faixa etária: 60% dos adolescentes declaram não estar satisfeitos com a quantidade de horas dormidas — e essa escassez pode desaguar em doenças como obesidade, depressão e ansiedade. “Na adolescência, meia hora a mais de sono pela manhã tende a melhorar as condições para o aprendizado e funciona ainda na frente da prevenção de doenças”, explica Andrea Bacelar.
Evidentemente que uma sacudida na rotina escolar envolve adaptações de cunho logístico, como a repaginação do horário dos professores e dos próprios pais, que em geral engatam, também eles, cedo no trabalho. Mas a ciência mostra por mais de um ângulo que o ajuste compensa. A preservação do sono quando a criança adentra a adolescência é vital porque justamente nesse período se consolida o desenvolvimento da área do cérebro que pilota a capacidade de julgamento, o controle dos impulsos e o raciocínio lógico — e um bom pernoite mantém o funcionamento dessa engrenagem a pleno vapor (veja o quadro ao lado). Também é quando as pestanas estão bem fechadas que hormônios sexuais e do crescimento são produzidos em eletrizante ritmo de fábrica. Aos navegantes em plena metamorfose, porém, um aviso: de nada adiantará toda essa mudança se o celular seguir em uso até altas horas. “A luz, aliada ao frenético fluxo de informações, vira motor de ansiedade e insônia. É essencial ter hora para desligar o aparelho”, enfatiza o neurocientista Ariovaldo Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais. O boletim agradece.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678