Escolas reabrem com desafio de sanar lacunas na educação deixadas por 2020
Adaptadas à cartilha antivírus, instituições contam com o imenso desafio de atrair a atenção dos jovens que perderam o hábito de estudar
Nesses últimos tempos, aconteceu de tudo na vida estudantil. Muita gente confinada por causa da pandemia se viu de repente sem aula. Aí veio o ensino 100% remoto, depois a fase híbrida, com uma parte da lição na escola e a outra em casa, até que chegaram as férias. E essas foram únicas, com pais, professores e alunos compartilhando a sensação de que a montanha-russa acadêmica acabou por comprometer a aquisição de conhecimento e daquelas habilidades socioemocionais que se aprendem nas trocas humanas. A situação enche a todos de ansiedade e dúvidas sobre o que está por vir no ano letivo que se inicia agora para boa parte dos 47,3 milhões de crianças e adolescentes no Brasil. Meu filho estará mesmo seguro na sala de aula? Como recuperar o que não foi assimilado em 2020? E, após tanto sacolejo, como retomar a rotina de estudos de forma saudável e produtiva?
Para tentar responder a essas perguntas, VEJA ouviu especialistas, famílias e mais de uma dezena de escolas de todas as regiões do país, empenhadas em proporcionar um regresso às carteiras sem solavancos, cercado dos cuidados sanitários que a presença do novo coronavírus ainda impõe. Todas elas vão oferecer a modalidade híbrida, sempre deixando aberta a opção àqueles que preferem por ora manter os filhos em casa. Outro traço que as une é a estratégia de retomar os trabalhos a partir de avaliações que indiquem em que pé da matéria os alunos verdadeiramente estão. “Vamos demorar um tempo para conseguir dar conta do que ficou para trás”, reconhece Christina Sabadell, diretora do colégio Pueri Domus, em São Paulo. Até lá, dá-lhe revisão de disciplinas passadas, mas não sedimentadas. “Sem uma boa revisão de conteúdos-chave, a aprendizagem fica comprometida”, diz Felipe Sundin, diretor-geral do Colégio e Curso AZ, no Rio de Janeiro. Nesse caso, o reforço está sendo oferecido em chamadas virtuais em que as dúvidas são sanadas pelos professores em tempo real e à base de encontros individuais.
Entrar em uma escola nos dias de hoje é um passeio pelo novo normal, recheado de protocolos estabelecidos mundialmente. Máscara, álcool em gel e divisórias de acrílico nas mesas são só o começo. A visão algo distópica segue no pátio, com número reduzido de crianças, monitoradas para que respeitem a distância umas das outras. No Colégio Seriös, em Brasília, as turmas foram divididas em “bolhas”, compostas de quinze estudantes cada uma. O cronograma é montado para que uma não esbarre com a outra. Ao deixar a garotada no colégio, pede-se aos pais que não saiam do carro. “Como não tivemos nenhum caso de Covid-19 quando abrimos, em outubro, a confiança das famílias em mandar os filhos para o colégio saltou de 42% para 70%”, conta a diretora pedagógica Vanessa Araújo. A vigilância precisa ser permanente. Em São Paulo, o colégio Avenues, por exemplo, fará toda semana testes de Covid-19 nos alunos e na equipe pedagógica.
A batalha que se inicia com a volta às aulas exige um imenso esforço de adaptação de todas as partes. Os alunos se desacostumaram de suas rotinas e, como já foi vastamente medido, isso impactou no desempenho geral. Uma pesquisa da FGV-SP, encomendada pela Fundação Lemann, indica que, se as escolas não agirem ativamente, o atraso em português e matemática pode superar um ano. “A preocupação nesse momento é cultivar o hábito do estudo, difícil de adquirir e fácil de perder”, disse a VEJA o matemático americano Salman Khan, dono da maior plataforma de aulas on-line do planeta. Também os pais têm um papel relevante no caminho de volta. Os especialistas recomendam que, sobretudo no caso de crianças pequenas, eles redobrem a atenção e, diante de sinais de que o processo está emperrado, acionem o colégio. “A comunicação entre as famílias e a escola é fundamental para que funcione”, enfatiza Olavo Nogueira, da ONG Todos pela Educação.
Para dar conta das matérias que ficaram para trás, os pedagogos de plantão também estão quebrando a cabeça para rearranjar os currículos e fazer caber neles tópicos fundamentais que acabaram não sendo bem absorvidos no ano que passou. Com isso, nasce uma espécie de dois em um, uma fusão entre o que estava programado para 2020 e o previsto para 2021. No Bandeirantes, de São Paulo, o conteúdo que não se encaixar agora será dado ao longo das séries seguintes, de forma diluída. A rede estadual paulista, que retoma o modo presencial na segunda 8, avisa que 2020/2021 serão como “um ciclo único” e lançou um quarto ano do ensino médio, para quem achar que precisa correr atrás do tempo perdido. As escolas municipais do Rio, de portas abertas no próximo dia 15, promoverão remexida semelhante no currículo e, para tentar frear a revoada de alunos sem computador nem celular para embarcar no ensino remoto (um nó que deixou muita gente sem lição), darão acesso às aulas em TV aberta e fechada.
O regresso à lição presencial, mesmo em sistema híbrido, inclui ainda um delicado desafio que extrapola a zona do aprendizado propriamente dito. A quarentena provocou em uma parte da turma mudanças de comportamento que merecem atenção. Uma pesquisa realizada na Espanha e na Itália, países bastante atingidos pela pandemia, revela que 85% dos pais perceberam nos filhos dificuldade de concentração (76%), tédio (52%), irritabilidade (39%), nervosismo (38%) e solidão (31%). Uma parcela ainda demonstra ansiedade crescente e, às vezes, depressão. “Iniciativas para manter a criançada saudável e com a sensação de acolhimento são essenciais neste período”, frisa Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV. Para os mais novos, isso conta muito. “Desde dezembro, meus filhos participam de um programa de ressocialização. Vão para a escola só para brincar”, fala Carima Orra, 27 anos, mãe de um trio de 2, 4 e 5 anos que volta ao batente no colégio Pen Life, de São Bernardo do Campo, em 18 de fevereiro. “Estamos lidando com uma comunidade que se encontra em patamares diferentes de ansiedade e, por isso, é vital dar acompanhamento psicopedagógico a cada aluno”, afirma Nigel Winnard, diretor da Escola Americana do Rio.
Mandar ou não os filhos à escola é uma decisão individual, mas abrir os portões, dando a opção para quem quer frequentá-la, tem se demonstrado um caminho acertado. Mundo afora, o retorno às aulas presenciais, sempre aplicando a cartilha antivírus, não levou a uma alta de infecção entre os estudantes — ao contrário, ela foi baixíssima, segundo um relatório do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças. Baseada nisso, a agência americana CDC recomendou a retomada das aulas nos Estados Unidos, mantendo-se o olhar atento para as boas regras sanitárias. O Brasil, um dos países que por mais tempo suspenderam a lição in loco — foram quarenta semanas de salas desertas em 2020, segundo a Unesco —, não destoa de tantos outros ao voltar às aulas entre quatro paredes. Se bem que, nestes tempos tão diferentes, até as paredes estão sendo derrubadas. Várias escolas começam a ensinar a matéria em praças, centros esportivos e parques. “Adaptamos sete estações de aprendizagem em parque recém-inaugurado para educar nossas crianças”, orgulha-se Vasti Ferrari, gestora da rede municipal de Jundiaí, a 57 quilômetros de São Paulo. São novos e bem-vindos ares.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724