Fernando Venâncio: “A língua portuguesa não nasceu com os portugueses”
Linguista português desfaz preconceitos e parte da formação das palavras para falar sobre a construção do idioma
Em Assim nasceu uma língua: Sobre as origens do português, o linguista português Fernando Venâncio desafia a visão tradicional de que esta língua deriva diretamente do latim. Ele revela que ela é, na verdade, uma variação do galego, falada por pastores no noroeste da Espanha. Com uma prosa envolvente e análise crítica, Venâncio desmonta mitos que serviram a projetos nacionalistas ao longo dos séculos.
Lançado no Brasil pela Tinta-da-China, o livro traz um prefácio do linguista Marcos Bagno, que antecipa surpresa e até indignação dos leitores brasileiros ao confrontarem essas novas ideias. Venâncio destaca o papel do til e outras transformações que moldaram nosso vocabulário. Ele argumenta que, antes de 1400, o português era essencialmente galego, um fato ofuscado pelas ambições imperiais de Portugal. Com perspicácia e maestria, o autor expõe a verdadeira história da nossa língua, desafiando noções antigas e oferecendo uma nova compreensão sobre nossa herança linguística.
Em entrevista a VEJA, Venâncio falou sobre seu novo lançamento no Brasil, as relações entre as línguas de ambos os lados do Atlântico, e o futuro do idioma. “Descobri-me historiador. E tinha uma grande história para contar”, resumiu o linguista sobre sua abordagem.
Seu livro, Assim Nasceu uma Língua, oferece uma perspectiva única sobre as origens e a evolução do português. O que o motivou a abordar este tema de maneira tão abrangente e detalhada?
Eu formei-me como linguista, nos anos de 1970, na Holanda. Colaborei em revistas internacionais da especialidade sobre diversos temas. Mas, aos poucos, descobri que me interessavam sobretudo as abordagens históricas: como a língua se desenvolveu, como atingiu esta ou aquela concreta conformação. Em suma, descobri-me historiador. E eu tinha, agora, essa grande história para contar, a de como, e onde, surgiu a língua portuguesa. Eu dava-me, também, conta de que tudo se passara bem diferentemente daquilo que nos tinham ensinado. E de que essa outra forma era, até, mais interessante.
O livro tem suscitado bastante interesse, especialmente pelas teses provocadoras que apresenta sobre as origens do português. Uma das suas afirmações mais marcantes é a de que o português é um fenômeno tardio, que deriva do galego, o que coloca em questão a própria identidade linguística de Portugal. Pode nos explicar melhor essa ideia e o porquê dela ser tão inovadora?
Essas teses provocatórias não são minhas na origem. Elas haviam sido lançadas pelos linguistas portugueses Ivo Castro e Esperança Cardeira e pelo linguista brasileiro Marcos Bagno. Em traços largos: o português não foi criado em Portugal, surgiu mesmo bem antes de Portugal existir, e mais exatamente em território galego. O que eu fiz foi fundamentar linguística e historicamente essas descobertas.
O senhor menciona que a história do português está intimamente ligada às suas tentativas de afastamento do galego. Quais são os motivos que fizeram com que essa influência galega fosse por tanto tempo ignorada?
Isso, essa ignorância generalizada da grande dívida que temos para com a Galiza, é talvez o aspecto mais decepcionante em toda esta trama. Andam aí sentimentos à mistura. Nós, portugueses, concebemos mal que o nosso idioma tenha sido engendrado fora do nosso território. E, efetivamente, toda a história do português acaba por ser a de um gradual distanciamento do galego. O português considera-se a si mesmo como um ser único. Nas suas formas mais extremas, esta convicção chega a supor uma intervenção providencial. Portugal teria, e isso desde sempre, um povo, uma cultura, uma religião e, claro, uma língua própria. Seríamos, portanto, e intrinsecamente, um caso singular e irrepetível. E aqui surge para mim um enigma. É o da surpreendente aceitação deste meu livro no mercado português, com oito edições já. Haverá uma mudança na mentalidade, na nossa auto-imagem? Acho difícil atribuir isso a um só livro.
Como o senhor acha que seu livro pode ajudar os brasileiros a entender melhor não apenas o português de Portugal, mas também a formação linguística do Brasil?
Portugal escolheu nunca interferir na língua que se vinha desenvolvendo no Brasil. Talvez por não a achar merecedora de atenção, ou sequer de crítica. Isso proporcionou ao idioma no Brasil uma invejável liberdade, e os brasileiros tiraram, e continuam a tirar, disso o máximo proveito. Vendo bem, é uma sorte que nunca tenhamos tido, brasileiros e portugueses, uma academia a decidir por nós o que é correto e o que não é.
Há uma tendência recente de abrasileiramento do vocabulário em Portugal, especialmente entre os jovens influenciados por youtubers brasileiros. Como o senhor observa esse fenômeno?
A influência do português brasileiro sobre o europeu não é um fenômeno recente. Ela já era sensível nos anos de 1980, quando se generalizaram em Portugal as telenovelas brasileiras. Os portugueses adotaram palavras como “bagunça”, “dica”, “fofoca” ou os valores brasileiros de “curtir” ou “torcer”. Passaram também a introduzir uma pergunta com “será que” ou uma adversativa com “só que”. O que é novo é a grande audiência que conteúdos brasileiros do YouTube para a infância e a primeira adolescência vêm tendo. Isto leva ao emprego por crianças de léxico tipicamente brasileiro. Fornecem-se os exemplos de “grama” por “relva” ou “geladeira” por “frigorífico”. Mas estamos longe de cenários alarmistas que imaginam a miudagem portuguesa a falar “brasileiro”.
Quais são suas expectativas para o futuro do português, tanto como uma língua global quanto em sua capacidade de se adaptar e evoluir?
A história do Português mostra que ele sabe adaptar-se com facilidade, e bons resultados, a circunstâncias novas e inesperadas. Ele superou as dores do crescimento e apresenta-se, de rosto renovado, pronto para novos embates. Isto permite prever que brasileiros, africanos e portugueses continuarão a dispor dum idioma rico e dúctil, sem receio das variedades e mesmo das diferenças.
Por fim, como se sente sendo um “derrubador de mitos” sobre a língua portuguesa?
Esse papel de “derrubador de mitos” não foi programado e menos ainda o vejo como missão. Mas não escondo que me dá algum prazer. Oxalá surjam sempre, onde eles forem necessários, tais “derrubadores”.