A primeira instituição de ensino técnico no Brasil, a escola federal de Aprendizes e Artífices, abriu as portas em 1909. Foi só em 1937, porém, que a Constituição instituiu a modalidade que tantos caminhos descortina a quem não segue a trilha universitária. Em diversos países, esta via é muito comum e respeitada, enquanto no cenário brasileiro vai aos poucos sendo valorizada — sabidamente, o jovem com um diploma desta natureza têm mais chances de conseguir uma boa vaga. Há diferentes tipos de formação nesse degrau escolar, que abrange hoje 2,7 milhões de brasileiros. As que exigem ensino médio completo e uma certificação (185 especialidades ao todo) vão de auxiliar de enfermagem e guia de turismo a técnicos em administração e eletrônica. Pois é justamente nesta seara que viceja hoje no país uma sorte de ilegalidades que levou o Ministério da Educação (MEC) a ser notificado.
Existem dois percursos para obter o diploma técnico: um é se matricular num curso regular e o outro, para quem já está no mercado de trabalho, é se submeter a uma prova demonstrando o saber na área de atuação. O sucesso no teste rende à vasta turma que opta por esse trajeto a chamada certificação por competência. Atualmente, apenas treze escolas baseadas em cinco estados, mais os institutos federais, têm a autorização para conceder tal diplomação — entre os quais o Centro Paula Souza, em São Paulo, e o Centro de Qualificação Técnica (CQT), no Rio de Janeiro, ambos de notória excelência. O escândalo: brotou um mercado paralelo e ilegal de certificados.
A reportagem de VEJA se debruçou sobre dez desses casos. Como o atendimento é on-line, uma série de mensagens foi trocada ao longo de semanas, sem que os encarregados de passar as informações nestes locais demonstrassem qualquer constrangimento em venderem aquilo que não podem. Quatro das escolas em questão fazem pior — além de fornecer o certificado, pulam a etapa da avaliação. Basta pagar e pegar o canudo. Duas situações são ainda mais espantosas: o próprio diploma do ensino médio, pré-requisito para a certificação profissional, é comercializado.
Localizada na região metropolitana do Rio, a Voin Educacional é uma dessas que, além de oferecerem o certificado sem o aval oficial, ignoram a exigência legal de aplicarem um teste. Via WhatsApp, um funcionário informa que o caminho para o diploma é simples — desembolsar 1 600 reais e aguardar trinta dias para recebê-lo pelo correio. “Não serão disponibilizadas provas, aulas, videoaulas ou materiais para estudo. Será realizado apenas um trâmite documental”, esclareceu o atendente logo no primeiro contato (leia os diálogos no quadro). No lugar da prova, a instituição pede apenas que a pessoa envie nome e CPF e declare o tempo em que trabalha na área. A ficha, preenchida na internet, é aceita sem nenhuma verificação da veracidade do que está lá. Para quem ainda não tem o diploma do ensino médio, a Voin oferece outro atalho: ele é vendido a 600 reais. “Precisamos apenas do trâmite documental”, repetiu o atendente a VEJA.
Esse sistema que restringe tanto o número de instituições que podem emitir a certificação soa burocrático para alguns, mas foi implantado justamente para pôr ordem na casa, reconhecendo de forma criteriosa as habilidades de nível técnico e, ao mesmo tempo, servindo de bússola para o mercado. Os que passam pelo crivo dessas poucas escolas autorizadas carregam no currículo um inquestionável selo de qualidade. Foi apenas em 2021 que o Conselho Nacional de Educação regulamentou esses canudos, determinando que deveriam ser concedidos por centros já especializados em cursos técnicos. Às secretarias e aos conselhos estaduais de Educação caberia, segundo a resolução, definir quais locais estariam aptos a dar a certificação. Uma boa medida que, como se vê, ficou no papel. “Muitas instituições credenciadas para oferecer cursos técnicos agora vendem a certificação de competências de maneira irregular, sem ter autorização”, reconhece Ricardo Tonassi, presidente do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação.
No rol das escolas que emitem o certificado ilegalmente, VEJA rastreou ainda a Cenip Cursos e a Cepafmar, ambas no Rio. Na Cepafmar, especializada no setor naval, o “combo”, que inclui supletivo para quem não possui diploma de ensino médio, mais o curso técnico, custa 1 800 reais à vista ou 2 000 no cartão de crédito. E nada de prova. “Damos entrada direto na documentação, baseados na experiência”, explicou a atendente. Os preços oscilam. Na Cenip, apenas o certificado de competência sai por 1 800 reais, também sem qualquer teste. Longe do eixo Sudeste, o preço despenca — no Instituto Tecnológico Bits, de Manaus, o tão almejado certificado sai por 290 reais (sem avaliação), e a entrega é em domicílio. As outras seis escolas às quais VEJA se deteve aplicam a prova, mas tratam de facilitar ao máximo a vida do estudante. “É muito difícil um aluno nosso reprovar”, garantiu a funcionária da Star Brasil, da Bahia. Em todos os casos, o processo é remoto, sem nenhum monitoramento, e o modelo é o de múltipla escolha.
Essas instituições que emitem certificados sem autorização se fiam espertamente em uma brecha no Sistema Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica (Sistec), do MEC, para onde as escolas enviam os dados dos alunos. Se uma empresa quiser consultá-lo para averiguar se um candidato possui mesmo a formação que diz ter, encontrará lá. O problema é que o sistema não diferencia os diplomas obtidos por certificação de competência do que recebe o jovem que concluiu um curso técnico regular, gerando uma confusão que só beneficia as instituições à margem da lei. “Na prática, o ministério acaba validando diplomas falsos”, resume Tonassi, do Fórum Nacional dos Conselhos de Educação, que há dois meses tomou a iniciativa de notificar a pasta. “Estamos fomentando um mercado paralelo, com profissionais sem a mínima qualificação necessária”, dispara.
Procurado por VEJA, o MEC justifica que não distingue as diferentes formações “para não haver qualquer discriminação em relação ao aluno que tenha finalizado o seu curso técnico por meio de certificação de saberes e competência”, seguindo, assim, a mesma diretriz dos cursos a distância. Já as secretarias de Educação, a quem cabe a função de fiscalizar os cursos, manifestaram desconhecimento sobre a maracutaia.
Pois a farra dos certificados, não raro, atrapalha o plano de pessoas que buscam impulso para arranjar um bom emprego. Nas páginas do Reclame Aqui, vê-se uma quantidade colossal de alunos que se sentem ludibriados ao descobrir que seu certificado não é reconhecido pelo conselho profissional de sua área. “Fiz o curso técnico de enfermagem por competência em julho. Aí fui atrás do registro profissional no conselho, o Coren de São Paulo, e eles me informaram que aquele diploma não era aceito. Pedi o reembolso à escola e, até agora, nada”, escreveu um jovem que frequentou o Star Brasil, da Bahia.
Outros imprevistos assombram os estudantes, que relatam a existência de instituições que ora param de responder tão logo o pagamento é efetuado, ora não mandam o diploma. “Após a conclusão do curso, não me atenderam mais. Nunca recebi a certificação em eletrônica. São golpistas”, desabafou a VEJA Alessandro Feliciano, que se inscreveu no Instituto Tecnológico Bits, de Manaus. Essas instituições, que silenciaram ao serem questionadas pela reportagem, incorrem no crime de falsidade ideológica, para o qual se prevê multa e até cinco anos de prisão. Que a irregularidade seja combatida em nome dos milhões de brasileiros que batalham por um ofício em que tenham o horizonte de uma vida melhor.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864