Confrontos no ambiente escolar fazem parte da rotina social de qualquer aluno e são muitas vezes desejáveis por proporcionar o vital exercício de lidar com o contraditório. É diferente — e nada saudável — quando o duelo resvala para a implicância pura e simples, que se repete de forma sistemática, envolve violência verbal, e não raro física, e põe do lado mais frágil do ringue alguém que silencia por insegurança e vergonha, sempre na esperança de os ataques cessarem. A essa prática se dá o nome de bullying, verbete em inglês há tempos absorvido no dicionário nacional pela insistência em se pronunciar nos colégios brasileiros. Com a ascensão das redes, o fenômeno naturalmente ganhou o ambiente virtual e virou cyberbullying. Agora, com a pandemia, momento em que a garotada está longe da escola, cada vez mais conectada em grupos de WhatsApp e mergulhada no ambiente on-line, o problema se amplificou. Acendeu inclusive um sinal de alerta na Organização das Nações Unidas (ONU), que chamou a atenção de pais, alunos e professores para o risco de um caso desses estar acontecendo ao seu lado, ainda que sem alarde, na surdina habitual.
Uma parte das famílias que vive o problema em casa prefere manter o anonimato para proteger os filhos, mas outras decidem falar justamente na tentativa de frear as agressões. Elas se manifestam em todas as faixas etárias, até mesmo entre os mais novinhos. Aos 5 anos, Tadeu, que era visto como agitado pelos colegas, começou a ser seguidamente excluído das brincadeiras no pátio e, na quarentena, a amolação migrou para as aulas online. A mãe procurou mediar a situação junto aos pais. “Expliquei que aquilo estava realmente atrapalhando o Tadeu. Eles se solidarizaram, porém nada mudou”, diz a empresária Rafaela Azevedo, 36 anos, de São Gonçalo, região metropolitana do Rio. A escola bem que tentou agir, trocando a professora — sem sucesso, como tantas outras que admitem não conseguir debelar o cyberbullying. E Tadeu vai mudar de colégio.
As estúpidas provocações, no corpo a corpo ou na versão cibernética, são uma clara expressão de intolerância em um mundo paradoxalmente cada vez mais afeito à diversidade. O fato de essa forma de abuso ainda se fazer tão presente remete a uma característica humana exacerbada ao longo da adolescência: a dificuldade natural de conviver com as diferenças — seja um comportamento que destoe do grupo, seja um atraso cognitivo ou uma característica física incomum — justamente numa fase de pouca maturidade e com o caráter em formação. O bullying é a manifestação amplificada dessa aversão ao que se distingue do chamado normal, sendo praticado, em geral, por pessoas que não conseguem domar os próprios medos e frustrações. A internet põe à mesa um fator adicional. “Enquanto os jovens de hoje aprendem sobre aceitação e igualdade, eles são expostos a uma enxurrada de exemplos de intolerância nas redes, e precisam pesar quando ainda estão desenvolvendo essa capacidade”, pondera o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez.
A mudança a jato das carteiras escolares para as videoaulas deixou pelo caminho, como já se sabe, muitas arestas a ser aparadas. Uma delas são as brechas on-line que abrem espaço para pegar no pé do colega — gesto corriqueiro que pode, pela recorrência e pelo teor, descambar para o cyberbullying. Durante a aula, ocorre muito de a turma usar o chat para torpedear um colega ou de um aluno silenciar o microfone do outro (ou até emudecer o do professor). Escolas e plataformas estão se mexendo para coibir isso — o Google for Education, por exemplo, criou ferramentas que restringem aos mestres o poder de moderação. “Esse é um problema que afeta não só o Brasil, mas vários países, por isso corremos para fazer os ajustes”, explica Zack Yeskel, gerente global de produtos do braço educacional do Google. Esse tipo de acerto não é detalhe para quem está imerso nas aulas a distância. Na escola particular onde estuda a pequena Heloisa, de 8 anos, em Palmas, no Tocantins, as crianças continuavam conversando e brincando no intervalo das lições, sem nenhuma espécie de supervisão. Ela passou a ser xingada e excluída, até que a mãe, Roberta Santos, percebendo a filha chorosa, entrou em ação. “O problema se resolveu quando falei diretamente com os pais dos coleguinhas”, lembra.
O colégio, nesse caso, ancorou-se no bom senso: os estudantes passaram a ser monitorados por um adulto no ambiente virtual durante todo o período de aulas, que agora, por segurança, são gravadas. Mas, com tempo de sobra em casa, crianças e adolescentes têm ficado horas demais absorvidas pela internet — e aí se elevam os riscos de cyberbullying. “Um aluno nosso criou um perfil falso para ofender colegas e professores no chat. Foi descoberto e coube à escola orientá-lo para que não se repita”, relata Paulo Lima, coordenador-geral no colégio COC, em Brasília. A experiência vem sinalizando que acionar as famílias pode evitar que uma fagulha se converta em incêndio. “A chave está na ponte permanente entre a comunidade escolar e os pais”, afirma a professora Fernanda Morais, do Mater Amabilis, de São Paulo.
Um em cada três estudantes brasileiros declara já ter sido alvo de cyberbullying pelo menos uma vez na vida, em diferentes graus — dado da ONU semelhante ao de outros trinta países pesquisados. Seus efeitos variam — medo de ir à escola, isolamento, dores de barriga e de cabeça —, e às vezes são devastadores. “Desenvolvi depressão, ataques de pânico e problemas para dormir”, lista a estudante de veterinária Tatiane Camba, 24 anos, da Anhembi Morumbi, em São Paulo. Diagnosticada com transtorno de déficit de atenção, esteve na pandemia na mira dos colegas em um grupo de WhatsApp, onde se referiam a ela como “a burra”. “Fizeram até um abaixo-assinado para eu mudar de turma, e eu mudei”, resigna-se Tatiane, que, embora tenha recebido apoio da faculdade, nunca denunciou o assédio.
Os estragos causados pela agressiva implicância no ambiente virtual podem ser até de maior potência do que na sala de aula. “O cyberbullying é mais grave pelo efeito multiplicador característico da internet”, alerta o advogado especializado Marco Antonio da Costa Sabino. Também pesa o fato de ali, protegidos pela distância, os estudantes se sentirem mais livres e soltos para atuar. Do outro lado, levar uma paulada nos grupos de WhatsApp, com os quais esses jovens mantêm relação visceral, provoca uma dor imensa. O caso da carioca Fatou Ndiaye, 15 anos, negra e filha de senegaleses, chegou à esfera policial. Aluna do Liceu Franco-Brasileiro, no Rio, ela entrou na cruel roda do bullying sendo repetido alvo de manifestações de cunho racista. Saiu do colégio, assim como dois dos quatro adolescentes que pilotaram a maldade. Os outros vêm recebendo aulas virtuais separados da turma. Três foram indiciados por injúria racial. “A internet não é terra sem lei e as pessoas precisam parar de agir como se fosse”, diz Fatou, que resume: “Isso machuca”.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701