‘A Barata’, de Ian McEwan: a comédia do Brexit
Com a breve narrativa, escritor usa do humor corrosivo e da influência de Kafka para expor o absurdo do processo de saída da Inglaterra da União Europeia
“Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma alguma profundo, acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa criatura gigantesca.” A frase inicial de A Barata, nova ficção do inglês Ian McEwan, graciosamente prepara o leitor para o que vem pela frente. A referência a A Metamorfose, clássico de Franz Kafka em que Gregor Samsa desperta sob a forma de um inseto enorme, é invertida. Desta vez, é uma barata, habitante do Palácio de Westminster, que acorda transformada em um ser humano: apenas quatro membros, “um pedaço de carne úmida e escorregadia” na boca e uma visão terrivelmente estreitada. Acrescente-se: primeiro-ministro da Inglaterra. No lugar do abismo existencial e metafísico de Kafka, a boa e velha sátira política.
Essas não são as únicas inversões que o premiado autor de Amsterdam (1998) opera em sua hilária narrativa: o grande projeto político que divide o reino, objeto de radical polarização e de grave paralisia institucional, é o resultado surpreendente — e, para muitos, absurdo — de um referendo. A decisão popular, que o Parlamento e o primeiro-ministro não conseguem implementar por meses, faz a roda da História girar para trás. Bebendo nas frustrações de trabalhadores e de velhos de todas as classes sociais, o país parece dar um salto no escuro, animado por um sentimento de saudosismo, de revolta contra uma servidão não identificada, de nacionalismo autêntico e insurgente contra uma “ordem corrupta e desacreditada”, que se ocultava por trás de “gráficos e projeções” e de uma “racionalidade árida”.
Diante desse enredo, é uma obviedade pensar no Brexit, o traumático processo de saída da União Europeia adotado pela Inglaterra em 2016, após um plebiscito que parece ter deixado as elites intelectuais e tecnocratas na lona. Não tão óbvio é o fato de a palavra “brexit” não ocorrer nem uma única vez nas 100 páginas do relato de McEwan. Tanto melhor para a diversão do leitor: a decisão dos eleitores britânicos no plebiscito de A Barata é pela adoção do “reversalismo”, doutrina econômica que prega a inversão completa do fluxo do dinheiro — os cidadãos pagam para trabalhar, e, quanto melhor o trabalho, mais caro; por outro lado, todos correm às lojas para receber dinheiro pelos produtos que desejam. Com seu talento, McEwan dá uma verdadeira “biografia” à doutrina do reversalismo: considerada por muitos um simples experimento mental, tida por praticamente todos como mera piada, “domínio dos excêntricos, de homens solitários que escreviam compulsivamente cartas lunáticas para os jornais”, a doutrina, uma vez aceita, parecia purificadora de todo o sistema. De vez em quando “se revelava atrativa na Europa Ocidental para grupos da direita ou extrema direita porque parecia eliminar o poder do Estado”. E é para implementar o reversalismo, vontade do povo expressa no plebiscito, que as baratas de Westminster, até então acostumadas à serena condição de plateia oculta do teatro parlamentar entre trabalhistas e conservadores, optam por tomar de assalto o governo, assumindo a forma do primeiro-ministro e a de seus assessores.
McEwan extrai tudo o que pode, em matéria de humor, da peculiar confusão política que os ingleses criaram para si. As referências à política real são evidentes. Há um primeiro-ministro que oferece a oportunidade do plebiscito confiante em que sairia vitorioso, exatamente como David Cameron; um líder trabalhista que é, na verdade, um ardoroso defensor do reversalismo, como Jeremy Corbyn sempre foi inimigo da União Europeia. Daí até as extravagantes consequências da implementação do plano, McEwan ilumina uma barafunda que terá mais perdedores que ganhadores. Na sátira mordaz de A Barata, a única que sai vitoriosa é a literatura.
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672